Imunizante é seguro e eficaz, reforçam sociedades.
Pesquisa promovida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) tem gerado polêmica junto à própria classe e à sociedade. A autarquia busca a opinião dos médicos brasileiros a respeito da obrigatoriedade de vacinação contra a covid-19 em crianças de seis meses a quatro anos e 11 meses – o imunizante foi incluído no calendário do Programa Nacional de Imunizações (PNI).
Ao menos três entidades médicas já se manifestaram contra a iniciativa da pesquisa, reiterando a eficácia e segurança da imunização. A deputada federal Luciene Cavalcante (PSol) acionou o Ministério Público Federal e a Organização Mundial da Saúde sobre a questão.
O objetivo alegado pelo CFM é conhecer a percepção sobre a obrigatoriedade da vacinação contra covid-19 em crianças. “A opinião dos médicos é fundamental para enriquecer o debate e contribuir para a tomada de decisões futuras”, afirmou o órgão em nota publicada no dia 9 de janeiro. O CFM informou ainda que os resultados da pesquisa “subsidiarão o CFM no desenvolvimento de ações relacionadas ao tema”.
Questionado pela reportagem sobre quais seriam essas ações, o órgão não se manifestou até o fechamento desta reportagem.
Vacina é segura e eficaz, reforçam entidades médicas
A Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) divulgou um posicionamento em 11 de janeiro (https://sbim.org.br/noticias/1857-posicionamento-pesquisa-do-cfm-sobre-a-obrigatoriedade-da-vacinacao-de-criancas-de-6-meses-a-menores-de-5-anos-contra-a-covid-19). A entidade afirma que a vacinação contra a covid-19 é uma estratégia comprovadamente eficaz e segura para a prevenção da doença – que é potencialmente fatal em todas as faixas etárias, inclusive entre crianças. O órgão cita um estudo que analisou quase 4% da população pediátrica dos Estados Unidos durante as ondas das variantes Delta e Ômicron e demonstrou que a vacinação teve eficácia de 74,3% contra a infecção por covid-19, 75,5% contra casos moderados ou graves, e 84,9% contra episódios que demandam internação em UTI.
Além disso, o mais recente boletim de monitoramento de Eventos Supostamente Atribuíveis à Vacinação e à Imunização publicado pelo Ministério da Saúde aponta que, após a aplicação de mais de 47 milhões de doses em menores de 18 anos entre 18/01/2021 e 31/12/2022, a grande maioria dos eventos foi leve ou moderado (cefaleia, febre, mialgia e outras reações esperadas). “Não houve nenhum óbito com relação causal consistente com a vacina utilizada”, frisa a nota.
A SBIm ressalta também que a incorporação de vacinas ao Sistema Único de Saúde (SUS) é atribuição do PNI, e que as decisões se baseiam em sólidas evidências científicas. “A SBIm entende que a pesquisa realizada pelo CFM não trará nenhum benefício à sociedade, uma vez que – ao equiparar crenças pessoais à ciência – pode gerar insegurança na comunidade médica e afastar a população das salas de vacinação”, conclui.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) emitiram uma nota conjunta afirmando que respeitam e apoiam as decisões do PNI. Em relação à pesquisa, as entidades ressaltam que ela traz quatro perguntas sem opção de argumentos ou comentários, sendo, portanto, desprovida de metodologia adequada para os objetivos propostos.
“É nosso entendimento que uma pesquisa com essas características possibilita interpretações equivocadas, e sem perspectivas de fornecer bases fundamentadas em evidências científicas, não sendo, portanto, um instrumento de utilidade ao conselho no que diz respeito a posicionamentos e tomadas de decisões”, argumentam. Para as entidades, a discussão sobre a obrigatoriedade da vacinação “não pode se misturar com as recomendações e evidências científicas do benefício da vacinação”.
Conforme a SBP e a SBI, evidências apontam para a necessidade de vacinas atualizadas e disponíveis para o grupo de crianças menores de cinco anos – no qual ainda há uma proporção significativa de crianças nunca infectadas e sem doses de vacina.
Citando o mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, as entidades recordam que, só em 2023, foram 5.006 hospitalizações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) causadas pela covid-19 e 135 mortes por covid-19 em crianças menores de cinco anos – cerca de metade delas sem nenhum fator de risco. “Muitas dessas hospitalizações e mortes podem ter sido evitadas”, afirmam, reiterando que não há óbitos de crianças relacionados às vacinas contra covid-19 no país.
Em relação à autonomia, as entidades lembram que todas as medidas de saúde pública devem ser seguidas pelos médicos ligados ao CFM. Além disso, destacam que a incorporação de vacinas pelo SUS não tem caráter opinativo.
Questionado pela reportagem sobre a pesquisa do CFM, o Ministério da Saúde não se manifestou até a publicação da reportagem.
Esclarecimentos do CFM
Com base na repercussão da iniciativa, o CFM divulgou uma nota no dia 12 de janeiro para prestar esclarecimentos a respeito da pesquisa. O conselho afirma que em nenhum momento contesta a eficácia ou a decisão do Ministério da Saúde de disponibilizar a vacina contra a covid-19 para a população infantil.
“A pesquisa visa unicamente conhecer a percepção do médico brasileiro sobre a obrigação imposta aos pais para que as crianças de seis meses a quatro anos e 11 meses sejam vacinadas, independentemente de prescrição médica da vacina”, alega o órgão. Segundo o CFM, a decisão surgiu a partir de inúmeros pleitos encaminhados à autarquia buscando conhecer o posicionamento sobre esse tema, pois a bula da vacina condicionaria a venda à prescrição médica.
O órgão cita abordagens semelhantes utilizadas em outros temas, como telemedicina e publicidade médica, para oferecer subsídios à autarquia e aos tomadores de decisão. O CFM informa que também solicitou posicionamentos técnicos às suas Câmaras Técnicas de Pediatria, de Infectologia e de Bioética sobre a obrigatoriedade.
“O CFM respeita o direito de outras entidades médicas se posicionarem sobre a realização da pesquisa, entendendo que essas manifestações enriquecem o debate ético e científico, desde que não atendam a interesses pessoais, políticos, ideológicos ou financeiros”, informa a nota. O órgão ressalta ainda que apoia ações empreendidas para ampliar a cobertura de vacinas que ajudam na prevenção e combate a doenças – como poliomielite, sarampo, meningite, rubéola e tuberculose, disponibilizadas no PNI.
Cremers
Procurado pela reportagem, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers) informou nesta segunda-feira (22) que a decisão sobre a realização da pesquisa foi única e exclusiva do CFM, não tendo passado pelos conselhos regionais. Portanto, o Cremers não foi consultado e não participou da elaboração da pesquisa.
“Na avaliação do Cremers, neste momento, seria mais adequada a promoção de uma ampla e profunda discussão sobre o assunto com a comunidade científica”, informou o órgão. Questionado sobre o motivo pelo qual deveria ocorrer o debate, o Cremers não respondeu.
“É direito da criança receber toda e qualquer vacina que vá protegê-la”, diz infectologista pediátrico e supervisor médico do Controle de Infecção e Infectologia Pediátrica da Santa Casa de Porto Alegre, Fabrizio Motta explica que a obrigatoriedade nada mais é do que a incorporação da vacinação na rotina do PNI, como outras vacinas, para resguardar as crianças de decisões de terceiros. O médico destaca que a imunização é importante pois protege contra a doença – o vírus já se consolidou entre os principais causadores de infecção respiratória viral em crianças. Além disso, os sintomas crônicos de covid longa têm aparecido cada vez mais em crianças, não havendo, portanto, dúvida do impacto da doença.
Para Motta, quando o conselho faz uma pesquisa sobre opinião, acaba diminuindo o poder da vacina frente a toda a literatura e à chancela do programa nacional de imunização, que conta com uma grande equipe e entidades médicas na análise da incorporação de vacinas. Se há alguma dúvida, o CFM deveria questionar o Ministério da Saúde com algum estudo, o que não é o caso com a pesquisa.
O infectologista pediátrico afirma que o CFM não realiza pesquisas com os médicos sobre a obrigatoriedade de outras vacinas no programa – e atribui esse acontecimento à politização e medo envolvendo a covid-19, em função de fake news.
Para o especialista, a situação deveria ser o contrário: questionar quem não vacina por que ainda não está vacinando: