Um fabricante de vacinas sediado na Índia iniciou um processo por difamação contra pesquisadores que publicaram um estudo que relatou eventos adversos em pessoas após a vacinação contra a covid-19. O fabricante também processou o editor do periódico internacional que publicou o estudo e exigiu que o artigo ofensivo fosse retratado imediatamente.
O estudo revisado por pares
O estudo que causa controvérsia é uma análise de segurança pós-comercialização (fase IV) da Covaxin [1], uma das vacinas contra a covid-19 produzidas na Índia. Os pesquisadores concluíram que os eventos adversos graves de interesse especial (serious adverse events of special interest, AESI) após a vacinação “podem não ser incomuns” e que a maioria dos AESIs em pessoas persistiu “por um período significativo”.
Dos 635 participantes envolvidos, um terço relatou o desenvolvimento de AESIs, tais como distúrbios cutâneos de início precoce, distúrbios do sistema nervoso, anomalias menstruais e anomalias oculares.
1% dos participantes sofreram AESI graves, como AVC e síndrome de Guillain-Barré, mas não foi possível estabelecer uma relação causal no estudo. Os pesquisadores exigiram uma “maior sensibilização e a estudos mais amplos” para examinar cuidadosamente o potencial de danos a longo prazo da vacina. O estudo foi publicado na revista Drug Safety em 13 de maio de 2024 [1], após ter sido examinado por dois revisores independentes e pelo editor da revista.
Tumulto em seguida
Poucos dias após a sua publicação, a principal organização governamental de investigação biomédica, o Conselho Indiano de Investigação Médica (Indian Council of Medical Research, ICMR [2]), que codesenvolveu o Covaxin, rapidamente se distanciou do estudo. Em 18 de maio de 2024, o ICMR escreveu à revista pedindo uma retratação do artigo e do “reconhecimento” que os pesquisadores fizeram ao ICMR por seu apoio.
A carta criticava o rigor do estudo – dizia que não havia um braço controle, que não havia valores de referência dos participantes e que a coleta de dados dos participantes através de entrevistas telefónicas gerava um “alto risco de viés”. Estas limitações, porém, são bem conhecidas nos estudos pós-comercialização. Realmente, os autores fizeram um esforço grande para discutir as limitações do estudo no artigo, bem como para recomendar estudos mais amplos para elucidar os danos. O ICMR não respondeu a repetidos questionamentos da mídia.
A ação judicial
Em julho de 2024, o fabricante da vacina, Bharat Biotech International Limited (BBIL) abriu um processo por difamação no tribunal civil de Hyderabad, na Índia, contra os 11 autores do estudo (6 são estudantes) e o chefe de redação da Drug Safety, Nitin Joshi.
A ação judicial alegava que o estudo tinha sido “mal concebido, com uma metodologia defeituosa” e, consequentemente, as conclusões tiradas sobre a segurança do Covaxin eram “pouco fiáveis e defeituosas”. A BBIL acusou os autores de fazerem declarações “irresponsáveis e enganosas” com “uma intenção maliciosa” concebida para ser “difamatória”, o que, por sua vez, levou a manchetes desfavoráveis na mídia que “prejudicaram irreversivelmente a reputação” da BBIL.
O processo alega que as afirmações nada elogiosas e falsas sobre o Covaxin permitiram aos concorrentes da BBIL “captar os seus clientes” e prejudicar seus negócios, “afastando potenciais clientes e parceiros comerciais”. Alegou igualmente que o estudo foi realizado a mando de concorrentes da BBIL. A BBIL exigiu a retratação do estudo, salientando que os pesquisadores deveriam se abster de quaisquer outras publicações da sua investigação sobre a vacina e pediu uma indenização de 50 milhões de rúpias ($US 600,000). A BBIL não fez nenhuma tentativa de abordar os autores e discutir alternativas antes de os processar. A BBIL não respondeu a repetidos pedidos de informação da mídia.
Declaração jurada dos autores
Todos os autores apresentaram uma declaração sob juramento, refutando as alegações feitas contra eles. Afirmaram que não exisitam “objetivos nefastos” na realização do estudo e que “este foi conduzido puramente a serviço da investigação científica”.
Na declaração, os autores argumentam que o estudo não estabeleceu uma “ligação definitiva com a vacina” e que isso foi claramente afirmado no resumo do artigo do periódico. Os autores pediram à realização de mais estudos e disseram que não podiam ser responsabilizados pela forma como os jornalistas divulgaram o estudo na mídia.
Apontaram que é prática comum publicar uma “carta ao editor” do periódico para exprimir uma diferença de opinião no lugar de criticar os pesquisadores na media. A BBIL optou por não seguir esta via. “Isto não passa de um ato de intimidação para coagir os [autores] a retirarem o seu artigo”, explicam os autores em sua declaração.
Foi apontado que o ICMR não é uma agência governamental “neutra”. O ICMR codesenvolveu o Covaxin e recebeu royalties da BBIL pela venda do produto no valor de 1,7 mil milhões de rúpias ($US 20 milhões).
A alegação da BBIL de que “sofreu qualquer perda de contratos para o fornecimento da vacina” é totalmente vaga e sem fundamentos, afirmam os autores. Em resumo, eles “seguiram rigorosamente os protocolos de pesquisa científica” e defendem a integridade dos dados, negando que sejam incorretos ou defeituosos e que, assim, não podem ser considerados difamatórios.
O periódico cede
Em 28 de agosto de 2024, Nitin Joshi, editor-chefe da Drug Safety, escreveu aos autores para dizer que uma “revisão pós-publicação” havia sido realizada e que ele agora concordava com as críticas do artigo. Joshi, apesar de ter revisado o estudo antes da sua publicação, declarou que tencionava retratar o artigo porque “já não tem confiança nas conclusões”.
Em e-mails privados, foi pedido a todos os autores que concordassem ou discordassem da decisão de retratar o artigo, mas essas razões não foram incluídas na nota pública de retratação. Em resposta, os autores imploraram a Joshi que reconsiderasse a sua decisão, uma vez que esta violava as políticas editoriais da editora (Springer), bem como as diretrizes da COPE, um conjunto de práticas globalmente adotadas para a publicação ética de artigos científicos.
“Remover/retratar o artigo da revista sem o devido processo, de forma completamente arbitrária e unilateral, sem sequer pedir qualquer explicação aos autores, sugere que a revista está agindo precipitadamente”, escreveram os autores.
Sugeriram também a Joshi que o processo judicial da BBIL serviu apenas para intimidar a revista a retratar o artigo e “calar ou abafar qualquer tipo de crítica/pesquisa sobre a vacina”. Os autores explicaram ainda que a retratação do estudo “prejudicaria a credibilidade de sua pesquisa, resultando em danos irreparáveis e difamação que não podem ser compensados”.
A 17 de setembro de 2024, Joshi confirmou num e-mail aos autores que a sua decisão de retratar o artigo era “final”. Negou ter sido pressionado pelo processo de difamação: “Gostaria de sublinhar que a decisão de retratação é uma decisão editorial, informada por uma nova avaliação do artigo depois de terem sido levantados questionamentos. Ao fazê-lo, acreditamos que o periódico seguiu corretamente as orientações do COPE”, escreveu Joshi na mensagem de e-mail.
Nem Joshi, nem a editora da revista (Springer) responderam às perguntas da mídia e presume-se que a retratação do artigo esteja iminente. O processo por difamação prossegue no tribunal civil de Hyderabad, na Índia, e os pesquisadores seniores estão financiando a sua própria defesa jurídica, assim como a defesa jurídica dos pesquisadores estudantes. Até o momento, mais de 250 cientistas, pesquisadores, especialistas em ética, médicos e pacientes assinaram uma carta aberta dirigida ao BBIL, ao ICMR e ao editor da Drug Safety, exigindo que o processo seja retirada e que o estudo siga publicado [3].
Referências