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Ensaios Clínicos e Ética

A crise ética da pesquisa clínica no Brasil: Lei n. 14.874/2024 e as flexibilizações das normativas brasileiras de proteção dos participantes

Hellmann F, GUEDERT JM
Editorial. Interface (Botucatu) 28 08 Jul 20242024 https://doi.org/10.1590/interface.240246 (de livre acesso em português e Inglês)
Traduzido por Salud y Fármacos, publicado em Boletim Fármacos: Ética 2024; 2(3)

Tags: Ética em Pesquisa, Ensaios Clínicos Multinacionais, Direitos dos Participantes, Big Pharma, Lei n. 14.874/2024, Regulação Sanitária, Lobby Político, Populações Vulneráveis, Representatividade Social, Biopolítica e Necropolítica, Pesquisa Clínica no Brasil, Medicamentos Me Too, Controle Social, Indenização por Danos

A pesquisa clínica é um campo essencial para o avanço da ciência médica e para o desenvolvimento de novos tratamentos. Porém, a globalização dos ensaios clínicos vem causando polêmicas, principalmente quanto à integridade dos dados coletados e possíveis violações dos direitos dos participantes [1-3]. No Brasil, o lobby do setor biofarmacêutico internacional (“Big Pharma”) é forte e levou à flexibilização das normas que protegem os participantes, levantando sérias preocupações éticas. Com a recente promulgação da Lei n. 14.874/2024 [4], é imperativo discutir como essas mudanças regulamentares afetam a ética na pesquisa e a necessidade de políticas que priorizem a proteção dos participantes e a soberania nacional.

Brasil como destino de pesquisas clínicas multinacionais
O Brasil é local ideal para pesquisas clínicas multinacionais: população altamente miscigenada; grandes hospitais concentrados em regiões populosas, facilitando o recrutamento de participantes e propiciando menores custos; grande número de pessoas sem tratamentos e fora de ensaios clínicos; forte relação médico-paciente; profissionais qualificados; e regulação sanitária estável [3,5]. Outros motivos para empresas farmacêuticas internacionais realizarem experimentos com seres humanos são o grande mercado brasileiro, a possibilidade de compra institucional pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e a judicialização da saúde, que força governos a comprar medicamentos novos e caros, mesmo quando existem alternativas equivalentes mais baratas [6,7].

Desigualdades e impactos sociais da pesquisa clínica no Brasil
Não existem normativas éticas para garantir que todos os estratos sociais sejam representados na experimentação farmacêutica. Há predominância de participantes de pesquisa provenientes das populações socialmente vulneráveis. No recrutamento desses participantes, a precariedade no acesso aos serviços de saúde torna-se oportunidade para participação em ensaios clínicos2. Assim, as empresas capitalizam sobre doenças e vulnerações, particularmente entre populações marginalizadas, sobretudo negras e pobres, com práticas que gerenciam a vida e as expõem ao risco de morte. Isso revela uma interdependência entre biopolítica e necropolítica no contexto da saúde e, no Brasil, reflete a dinâmica de poder e exploração que caracteriza a indústria farmacêutica contemporânea [2].

A implementação de ensaios clínicos internacionais de medicamentos na América Latina, incluindo o Brasil, carece de um valor social robusto, proporciona benefícios financeiros principalmente para grandes corporações farmacêuticas e resulta na comercialização de medicamentos com segurança questionável [3,8,9].

Apenas uma pequena porcentagem dos novos produtos farmacêuticos agrega valor terapêutico8. A maioria é desenvolvida para maximizar os lucros, como os chamados medicamentos me too, lançados para assegurar mercado. Não há garantia de que os produtos testados no país serão registrados lá, e não há exigência de que sejam vendidos a preços acessíveis [10]. Apenas 60% dos novos medicamentos aprovados pela Food and Drug Administration (FDA) e testados na América Latina são registrados nos países anfitriões, a maioria destes com preços exorbitantes [10].

Quando os estudos da Big Pharma são desenvolvidos em instituições públicas, dinheiro público subsidia a pesquisa farmacêutica privada, com o SUS fornecendo recursos humanos e físicos e arcando com custos de tratamento de eventos adversos. Pesquisadores latino-americanos, incluindo os brasileiros, são frequentemente subutilizados, atuando como assistentes de pesquisa, recrutadores e coletadores de dados, e não como cientistas independentes [11]. Além disso, doenças negligenciadas no Brasil não são adequadamente investigadas pelo baixo investimento público em pesquisa12 e direcionamento dos pesquisadores para projetos mais lucrativos para o setor farmacêutico [12].

Influência da Big Pharma e lobby político
A indústria farmacêutica sabe que seu sucesso econômico depende das decisões políticas e realiza um intenso lobby para influenciar políticas públicas e regulamentações. Seu objetivo é facilitar ensaios clínicos, aprovação de novos medicamentos e expansão de usos, priorizando lucros sobre a saúde pública. Esse lobby envolve doações eleitorais; pagamento de viagens e de outros benefícios; e a prática de “portas giratórias”, na qual ex-funcionários públicos são contratados pela indústria e vice-versa [13]. Por exemplo, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), que representa 56 laboratórios estrangeiros e é responsável por 80% das vendas de medicamentos de referência e 33% dos genéricos no Brasil, já patrocinou viagens internacionais para parlamentares brasileiros [13]. Essas estratégias influenciam tanto o Congresso, com formação da chamada “Bancada dos Medicamentos”, quanto o Poder Executivo, moldando decisões de agências reguladoras e ministérios para aprovar leis e regulamentos que favoreçam o setor.

Representantes das Big Pharma e das Organizações Representativas de Pesquisa Clínica sustentaram que modificações dos padrões éticos da pesquisa tornariam o Brasil mais atraente para estudos multicêntricos internacionais [14]. Essa afirmação é enganosa, pois testes clínicos ocorrem na fase final do desenvolvimento, enquanto inovação e concessão de patentes acontecem no início do processo. Além disso, o desempenho inovador do Brasil no setor farmacêutico é medíocre, refletindo o pouco incentivo à inovação no país condizente com as prioridades sanitárias [14].

A população enfrenta dificuldades de acesso aos medicamentos pela política econômica subordinada à lógica capitalista predatória. Portanto, é falacioso afirmar que as pesquisas clínicas das farmacêuticas internacionais no Brasil garantem acesso às tecnologias de ponta ao povo brasileiro. Esses estudos não são tratamentos, mas sim experimentos para avaliar uma intervenção que nem sempre (ou raramente) é benéfica para os participantes (especialmente nas fases iniciais 1 e 2 dos estudos). Muitos recebem placebo sem entender completamente essa possibilidade e, caso um medicamento seja aprovado e comercializado, não há garantia de acesso pós-estudo a um produto farmacêutico potencialmente benéfico desenvolvido por meio de pesquisa em seus corpos [9].

Lei n. 14.874/2024: a ética sacrificada pelo lucro
A configuração histórica da ética em pesquisa no Brasil conjuga sujeitos, fatores e lutas políticas, cuja compreensão demanda considerar a atuação de movimentos sociais na regulamentação ética dos ensaios clínicos [15], que começou no final dos anos 1980 – Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 01/1988 – e se consolidou com a criação do sistema de Comitês de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/Conep) – Resolução CNS 196/1996. A recente Lei n. 14.874/2024 [4] torna os padrões éticos mais flexíveis e, segundo nossa argumentação, prioriza os lucros corporativos em detrimento da segurança dos participantes. Originado como Projeto de Lei (PL) 200/2015 no Senado, tutelado pela Interfarma e Aliança Pesquisa Clínica Brasil, o projeto foi modificado na Câmara como PL 7082/17, retorna ao Senado como PL 6.007/2023 [16], no qual é aprovado, e, por fim, sancionado pelo presidente Lula em 28 de maio de 2024 [4].

Embora todas as versões da lei tenham sido duramente criticadas [14,17-19] e numerosas entidades conceituadas tenham pedido diversos vetos, o presidente vetou apenas dois pontos da lei, alegando inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público. O primeiro exigia a comunicação ao Ministério Público da participação de povos originários em pesquisas, o que violava o princípio da isonomia e sugeria sua tutela estatal, condição já superada pela legislação. O segundo veto foi ao dispositivo que limitava a continuidade do fornecimento gratuito do medicamento experimental a cinco anos após sua disponibilidade comercial no país [4]. Essa perda de acesso ao medicamento após cinco anos tem um impacto negativo sobre a saúde (e os direitos) dos participantes e prejudica o desenvolvimento de pesquisas clínicas éticas. Entretanto, outros problemas relacionados ao acesso pós-estudo permanecem, como o fato de o patrocinador e o pesquisador – e não o médico-assistente – indicarem a necessidade de manter a terapia, com base em critérios estabelecidos, incluindo a gravidade da doença e a disponibilidade de alternativas terapêuticas locais satisfatórias para o tratamento. Entende-se que o acesso pós-estudo deve ser garantido a todos os participantes da pesquisa que se beneficiaram da intervenção e àqueles do grupo placebo, pelo tempo que for necessário e benéfico [20]. No Brasil, a dispensação do medicamento testado é assegurada pelo Programa de Fornecimento Pós-Estudo, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) [21].

Fim do sistema CEP/Conep e do controle social
A nova lei4 ignora a trajetória histórica do CNS na regulamentação da ética em pesquisa e decreta o fim do sistema CEP/Conep, que, apesar das fragilidades, conta com quase 900 CEPs distribuídos pelo país e mais de 16 mil pessoas diretamente envolvidas, a maioria voluntariamente, focadas na proteção dos participantes de pesquisa. Um de seus maiores atributos era o controle social, porém, mesmo apoiado por entidades representantes de movimentos sociais, o lobby farmacêutico atropela direitos e interesses públicos e põe em risco a saúde dos participantes de pesquisa clínica. Embora o debate sobre o controle social das pesquisas não tenha efetivamente alcançado a sociedade brasileira como se deseja [22], ele deveria ser mantido.

A Lei n. 14.874/20244 substitui a Conep pela Instância Nacional de Ética em Pesquisa, coordenada por área técnica no Ministério da Saúde e com composição e regulamentação a serem definidas em um futuro regulamento. Isso representa a extinção do controle social da eticidade das pesquisas em humanos e um retrocesso na governança ética.

O PL inicial restringia-se às pesquisas clínicas. A lei aprovada ampliou sua abrangência a todas as áreas do conhecimento, a serem definidas por regulamento. Essa ampliação acentua o problema da avaliação ética das pesquisas nas Ciências Sociais e Humanas e pode resultar em falta de adequação e compreensão das suas especificidades.

A proteção contra conflitos de interesse do mercado farmacêutico depende do controle social e de avaliação ética adequada, essenciais para que a pesquisa clínica tenha valor social e científico.

Mudanças nos CEPs
A nova lei estabelece que o CEP deve ser constituído de “membros das áreas médica, científica e não científica”, mas não afirma a necessidade de ter profissionais que entendam de ética aplicada, como bioeticistas, ou mesmo advogados, farmacêuticos, farmacologistas e demais profissionais. Ainda, exige apenas um representante dos participantes de pesquisa, independentemente do número total de membros (VII Artigo 7º) [4,] o que pode ser insuficiente para garantir a representatividade adequada.

A lei institui que a análise ética de pesquisas multicêntricas será realizada por um único CEP, preferencialmente o vinculado ao centro coordenador da pesquisa, que emitirá o parecer e notificará os demais CEPs participantes. Ensaios clínicos de alto risco exigem avaliação ética independente, imparcial e pareceristas experientes e eticamente subsidiados. Permitir que somente um CEP, vinculado à instituição do pesquisador, realize a análise ética pode comprometer a independência dessa avaliação. Preconiza-se que CEPs dos centros participantes devam avaliar os protocolos de pesquisa para aferir sua viabilidade local, assegurando equipe capacitada e recursos assistenciais disponíveis para a proteção dos participantes e resposta adequada aos efeitos adversos e minimização de danos.

A lei altera a exigência de relatórios de pesquisa, que passam a ser anuais em vez de semestrais, conforme preconizado pela Resolução CNS 466/12. Isso reduz a frequência de monitoramento e atualização das informações, afetando a transparência e a capacidade de resposta rápida a problemas que surgirem durante os estudos.

Mais um problema é a emissão de pareceres pelos CEPs, que podem aprovar, não aprovar ou suspender a pesquisa por motivos de segurança (§ 4, Artigo 14) [4], mas não prevê a possibilidade de emitir pendências solicitando adequações.

Questões sobre a proteção dos participantes de pesquisa
Outro aspecto preocupante é a permissão para remunerar indivíduos saudáveis que participem de ensaios clínicos de fase I ou de estudos de bioequivalência. Essa questão, também presente na Resolução CNS 466/12 [23], desrespeita o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que proíbe a comercialização do corpo humano ou de suas partes. A possibilidade de ganho financeiro para participação em pesquisas é especialmente preocupante no contexto brasileiro, no qual a vulnerabilidade social é prevalente.

O artigo 23 da Lei n. 14.874/20244 garante que o participante será indenizado por eventuais danos sofridos durante a pesquisa e receberá a assistência à saúde necessária. No entanto, a lei não especifica claramente quem é responsável pela indenização, o que pode gerar incertezas e dificuldades na aplicação desse direito.

Quanto ao armazenamento de dados de pesquisa e ao envio de material biológico ao exterior, a regulamentação rigorosa é essencial para proteger os direitos dos participantes e a soberania nacional. No entanto, a lei aprovada compromete esses direitos ao permitir que o material, uma vez fora do país, seja regido por legislações estrangeiras, que podem não oferecer o mesmo nível de proteção, havendo a possibilidade de seu patenteamento e comercialização, colocando em risco a soberania nacional sobre recursos genéticos e biológicos.

Um apelo por ética na pesquisa clínica brasileira
A pesquisa clínica no Brasil deve ser conduzida de maneira ética, justa, transparente e benéfica para toda a sociedade. O afrouxamento das normas de proteção dos participantes em favor de interesses comerciais é um retrocesso inaceitável, especialmente prejudicial às populações vulneráveis. A proteção de grupos vulneráveis não é suficientemente abordada na nova lei. Não há penalidades para os pesquisadores e patrocinadores que violem as normas éticas.

É fundamental que o novo Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos considere o controle social, trabalhe alinhado à Anvisa e seja adequadamente financiado para cumprir suas funções. Parte desse financiamento poderia vir da cobrança de taxas pelo Tesouro da União (e não pelos CEPs) para a avaliação ética dos protocolos de pesquisa clínica comerciais.

É necessário estabelecer um sistema de pesquisa clínica que promova inovações de forma ética e sustentável, beneficiando a saúde pública e o desenvolvimento científico do país. Além disso, serão necessários programas governamentais robustos para estimular estudos sobre doenças negligenciadas e populações historicamente privadas de terapias seguras, como a pediátrica, já que o setor não está interessado neles devido ao maior risco (e, portanto, maior supervisão) e à baixa margem de lucro.

A crise ética na pesquisa clínica no Brasil exige uma resposta urgente. Para isso, o Poder Executivo precisa urgentemente trabalhar na regulamentação da Lei n. 14.874/2024, com o objetivo de reduzir os danos causados e potencializar a proteção dos participantes de pesquisa clínica e da soberania nacional.

Referências

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