Com o aumento do preço dos medicamentos de prescrição, os medicamentos genéricos oferecem uma forma dos consumidores economizarem. Apesar dos genéricos terem os mesmos princípios ativos que os medicamentos de marca e resultarem no mesmo efeito clínico, eles normalmente custam até 85% menos [1].
Mas agora, a indústria de medicamentos genéricos está reagindo contra um esforço do governo (dos EUA) para reduzir o custo de medicamentos que salvam vidas, mesmo que o plano seja elaborado para permitir que eles produzam mais medicamentos genéricos. Em documentos do governo analisados pelo The Lever, os fabricantes de medicamentos genéricos insistem que a iniciativa ameaça seus próprios direitos de monopólio — que os permitem inflar seus lucros e manter os preços dos medicamentos genéricos artificialmente altos.
A indústria também teme que a iniciativa seja um passo para possibilitar que o governo federal fabrique medicamentos por conta própria — como foi proposto no Congresso e adotado na Califórnia e em outros países.
A resistência da indústria ocorreu depois queo governo Biden [2] passou a focar nos medicamentos financiados pelo cidadão no ano passado, em uma tentativa de reduzir os altos preços dos medicamentos de prescrição[3]. Usando a autoridade concedida por uma lei federal de longa data chamada Bayh-Dole Act, as agências governamentais podem “intervir” e autorizar os fabricantes de genéricos a venderem medicamentos patenteados a preços mais baixos se o responsável pela patente original não disponibilizar esses medicamentos financiados com recursos públicos em “condições razoáveis.”
Em resposta ao rascunho do framework para o uso desse poder [4], a Association of Accessible Medicines (Associação de Medicamentos Acessíveis), que representa fabricantes e distribuidores de medicamentos genéricos, comentou que a proposta [5]“ coloca em risco o papel fundamental que os genéricos e biossimilares desempenham para garantir a acessibilidade e a disponibilidade de medicamentos”.
Em sua carta de observações de 6 de fevereiro, o grupo de lobby dos genéricos reiterou as alegações das grandes corporações farmacêuticas e das empresas de capital de risco [6] de que o uso do direitos de intervenção para reduzir os preços dos medicamentos sufocará a inovação [7], prejudicando os pacientes e levando a um “acesso atrasado a medicamentos de custo mais baixo”.
Fred Ledley, professor de ciências naturais e aplicadas da Universidade de Bentley e especialista em preços de medicamentos, enxerga esses argumentos como uma distração que desvia a atenção do verdadeiro interesse da indústria de medicamentos genéricos: proteger seus lucros.
“Nesse contexto, eu diria que a grande motivação para as grandes empresas de medicamentos genéricos se oporem aos direitos de intervenção (independentemente do que elas realmente alegam) tem pouco a ver com a [Lei Bayh-Dole] em si, mas com a possível ameaça ao seu mercado”, escreveu Ledley em um e-mail para o The Lever.
Em resposta a um pedido de comentário, um porta-voz da Association of Accessible Medicines escreveu em um e-mail: “Injetar imprevisibilidade de intervenção no mercado em um momento em que os fabricantes de genéricos estão lutando para se manter no mercado é ruim tanto para os pacientes americanos quanto para os genéricos… Os direitos de intervenção dariam início a um futuro de incertezas”.
Um Novo Oponente Para Os Direitos de Intervenção
A premissa por trás dos direitos de intervenção é a seguinte: Já que os cidadãos americanos investiram dinheiro na criação de medicamentos prescritos, eles deveriam poder comprar o medicamento a um preço justo.
De acordo com a Comissão Federal de Comércio, que aplica as leis antitruste e de proteção ao consumidor, “as empresas farmacêuticas aproveitam centenas de bilhões de dólares de investimento do cidadão em P&D. Os direitos de intervenção são uma verificação fundamental para garantir que as invenções financiadas pelos cidadãos sejam baratas e acessíveis para o público” [8].
Entre 2017 e 2021, a Institutos Nacionais de Saúde (National Institutes of Health, NIH) — a principal agência dos EUA responsável pela pesquisa biomédica e de saúde pública — investiram $97 bilhões em pesquisa básica e $28 bilhões em ensaios clínicos e em atividades relacionadas [9], todas elas passos cruciais para o desenvolvimento de medicamentos.
O governo também desembolsou $11,7 bilhões [10]em pesquisas para todos os 10 medicamentos que estão atualmente em negociação de preços pela primeira vez pelo Medicare.
Agora, pela primeira vez desde que a autoridade a eles foi concedida há 44 anos, os reguladores estão considerando usar o direito de intervenção para tornar os medicamentos mais acessíveis. Porém, o planejamento enfrentou uma barreira de oposição das indústrias que ganham bilhões com medicamentos que salvam vidas a preços exorbitantes, incluindo gigantes farmacêuticos, interessados de grandes empresas [11], e empresas de Wall Street [12].
A indústria de medicamentos genéricos é a mais nova adição a essa resistência. O objetivo dos medicamentos genéricos é reduzir os custos do sistema de saúde e, ao mesmo tempo, fornecer a milhões de pessoas os medicamentos necessários. De acordo com estimativas da U.S. Food and Drug Administration (FDA), 91% de todas as prescrições em todo o país são preenchidas com medicamentos genéricos, com mais de 32.000 medicamentos genéricos aprovados pela FDA até o momento [13].
Ainda que sejam mais baratos do que os medicamentos de marca, os genéricos ainda geram um grande lucro para os fabricantes. Em 2022, o valor do mercado global de genéricos foi avaliado em $ 412 bilhões. Até 2030, espera-se que a indústria atinja $ 613 bilhões [14].
Graças aos intermediários farmacêuticos [15] que se beneficiam dos preços altos dos medicamentos, até mesmo os preços de varejo dos medicamentos genéricos estão inflacionados, fazendo com que os consumidores americanos paguem a mais [16].
Os fabricantes também têm um histórico de tabelar preços de diversos medicamentos genéricos — uma prática anticompetitiva em que os fabricantes de medicamentos concordam em vender seu produto por um valor específico — resultando em custos maiores para os programas federais de saúde e beneficiários. Em 2021, três fabricantes de medicamentos genéricos concordaram em pagar $447 milhões por essa prática [17] e, no ano passado, outros dois fabricantes [18] enfrentaram penalidades por tabelar o preço de um medicamento para colesterol popular, entre outros medicamentos.
Uma suposta conspiração de tabelar preços de genéricos, envolvendo pelo ao menos 16 empresas e 300 medicamentos entre 2016 e 2018 [19], levou um investigador a chamá-la de “provavelmente o maior cartel da história dos Estados Unidos”.
“Enfraquecendo Incentivos para Fabricantes de Genéricos”
Considerando suas motivações de lucro, pode parecer contraintuitivo que a indústria de genéricos se oponha aos esforços para permitir que eles licenciem mais patentes de medicamentos de marca. Mas os fabricantes de medicamentos genéricos podem estar lutando contra as intervenções porque elas podem comprometer o uso, pela indústria, de uma regra governamental que concede ao primeiro fabricante de um medicamento genérico seis meses de exclusividade de mercado antes de enfrentar a concorrência
Segundo a carta de comentário da Associação de Medicamentos Acessíveis sobre a estrutura da política de intervenção, esse período de exclusividade de 180 dias é o “incentivo mais eficiente para que os desenvolvedores de genéricos desafiem as patentes de marca”.
“O enfraquecimento da exclusividade — seja para um ou dezenas de medicamentos— provavelmente irá atrasar o acesso aos medicamentos genéricos de preço mais acessível, que são a única solução comprovada para os preços altos dos medicamentos”, escreveu o representante do grupo de lobby em seu e-mail para o The Lever.
Em 1984, a Lei Hatch-Waxman [20] simplificou o processo de desenvolvimento de medicamentos genéricos para incentivar a produção de mais medicamentos de baixo custo. Ela também garantiu ao primeiro fabricante de uma versão genérica de um medicamento um período de exclusividade de 180 dias sem que outros fabricantes de medicamentos genéricos pudessem entrar no mercado.
Esse período de exclusividade pode ser lucrativo para os fabricantes de medicamentos: Durante o período de seis meses, os fabricantes de genéricos não são forçados pela concorrência a diminuírem os preços de seus medicamentos e, assim, podem oferecer seus produtos com um desconto de apenas 10% a 15% em relação ao medicamento original de marca [21]. Quando a concorrência é introduzida, o preço dos medicamentos cai consideravelmente, de acordo com estimativas da FDA [22].
“A indústria de medicamentos genéricos é uma defensora ferrenha do período de exclusividade de 180 dias, durante o qual os fabricantes de genéricos obtêm um faturamento muito maior do que quando há uma concorrência mais acirrada”, disse Steve Knievel, especialista em questões de política que afetam os preços dos medicamentos e o acesso a eles na Public Citizen, uma organização de defesa ao consumidor que tem se manifestado a favor dos direitos de intervenção [23].
Normalmente, os fabricantes de medicamentos genéricos tentam obter esse período de exclusividade sendo os primeiros a solicitar ao FDA a fabricação e a comercialização de um medicamento genérico, certificando que a patente do medicamento de marca é “inválida, inaplicável ou não será infringida pelo produto genérico” [24]. Os produtos farmacêuticos genéricos normalmente apresentam esse tipo de contestação quando um período de proteção de patente está prestes a terminar [25].
Porém, a autoridade de intervenção do governo permite que ele licencie uma patente de medicamento para fabricantes de genéricos de sua escolha. Fazendo isso, a Associação de Medicamentos Acessíveis argumenta que os fabricantes de medicamentos serão desencorajados a contestar patentes de medicamentos de marca, se o governo liberar licenças para múltiplos fabricantes ao mesmo tempo, eliminando todos os potenciais benefícios de exclusividade.
“Esses primeiros solicitantes terão investido uma quantidade significativa de tempo e esforço para contestar as patentes em questão, tudo para perder sua exclusividade”, escreveu o grupo de lobby em seu comentário. “Ao reduzir os incentivos para os fabricantes de genéricos, a intervenção poderia levar a menos contestações de patentes, resultando em atraso no acesso a medicamentos de baixo custo.”
Porém, de acordo com Knievel, os receios dos fabricantes de medicamentos genéricos de perderem a sua lucrativo período de exclusividade para a maior parte dos medicamentos são muito exagerados
Por causa da forma como as regulamentações sobre os direitos de intervenção estão formuladas, as chances do governo licenciar uma patente para um fabricante de medicamentos genéricos são incrivelmente raras, de acordo com Knievel. Os fabricantes ainda terão seis meses de exclusividade para a grande maioria dos medicamentos genéricos, o que significa que seria uma péssima decisão empresarial para eles pararem de contestar patentes de marcas em geral.
Somente os medicamentos desenvolvidos com financiamento público podem ser alvo de intervenções [26]. Embora quase todos os medicamentos dos EUA se enquadrem nesta definição, os órgãos reguladores do governo ainda só podem forçar versões genéricas de um medicamento se constatarem que o fabricante original não está conseguindo cumprir pelo menos um dos quatro requisitos [27]:
Usando as provisões da Lei Bayh-Dole, Ledley, da Bentley University, analisou todos os medicamentos aprovados pela FDA de 2010 a 2019 e descobriu que mais de 99% dos medicamentos não estão sujeitos a direitos de intervenção [29].
Medo da Fabricação do Governo
Outro argumento da Associação de Medicamentos Acessíveis é que os direitos de intervenção estão “abrindo as portas para a fabricação comandada pelo governo”. Isso, por sua vez, ” desestimularia drasticamente” os fabricantes de genéricos a trazerem novos medicamentos para o mercado, o que “poderia levar à insuficiência de medicamentos se, por exemplo, o governo não puder abastecer efetivamente o mercado” com medicamentos genéricos, de acordo com o comentário [30].
A ideia da fabricação de medicamentos administrada pelo governo já foi idealizada no passado.
Em 2018, a senadora Elizabeth Warren (D-Ma.) apresentou uma lei que tinha como objetivo autorizar a fabricação pública de medicamentos de baixo custo em resposta à alegação de que os fabricantes de medicamentos genéricos estariam envolvidos em uma prática generalizada de tabelar preços [31].
Três anos depois, o Departamento de Defesa concedeu um contrato multimilionário [32] a um fabricante farmacêutico para produzir três medicamentos para a COVID-19. E, no ano passado, a Califórnia fechou um contrato de 10 anos com um fabricante de medicamentos para criar a própria linha de insulina do estado para reduzir o custo do medicamento [33]—se tornando o primeiro estado a fazer isso.
Outros países, como a China, a Índia e a Suécia, também têm empresas farmacêuticas estatais que produzem medicamentos essenciais [34].
Mas Knievel não acredita que o governo esteja prestes a usar sua autoridade de intervenção para se envolver na produção pública e generalizada de medicamentos.
“A sugestão de que o governo poderia assumir a fabricação de medicamentos é , francamente, absurda”, disse ele. “A produção farmacêutica pública tem um papel importante a desempenhar na garantia de um abastecimento confiável de medicamentos essenciais, mas não é disso que se trata a mobilização para o exercício do direito à intervenção.”
Ledley concordou.
“Não há motivo algum para acreditar que o governo possa fabricar produtos de forma mais eficiente do que a indústria, e a última coisa de que os pacientes precisam é que seu estoque de medicamentos seja envolvido em política de gastos governamentais”, escreveu ele em seu e-mail para o The Lever.” Apesar da ideia de que a produção de medicamentos pelo governo impediria que alguns indivíduos da sociedade lucrassem com os males de outros ser atraente, na prática o governo terceiriza praticamente toda a produção.”
Apesar da capacidade limitada do governo de impor versões genéricas mais baratas de medicamentos, Knievel disse que o plano atual de usar o direito de intervenção para diminuir os preços de alguns medicamentos ainda é de vital importância.
“Não queremos exagerar no alcance. Mas, mesmo assim, esses direitos são extremamente importantes”, disse Knievel. “Existem milhares de pacientes e bilhões de dólares em jogo, mesmo que esses direitos tenham uma aplicação relativamente limitada.”
Ele apontou o medicamento para câncer de próstata Xtandi [35], que foi desenvolvido por pesquisadores de universidades públicas com financiamento do governo, e ainda assim tinha um preço no atacado de $189.900 por ano, a partir de janeiro de 2022 [36].
Embora não se saiba se a resistência da indústria de medicamentos genéricos irá prejudicar a luta para que o governo use os direitos de intervenção, Knievel ainda tem esperança.
“Tenho esperança de que a oposição dos grupos da indústria… e assim por diante não vai impedir que o governo utilize esses direitos quando julgar necessário e apropriado para remediar um abuso relacionado a uma invenção financiada pelo governo”, disse ele.
Referências