Ao mesmo tempo que o governo inicia suas primeiras negociações de preços para um punhado de medicamentos do Medicare, a indústria farmacêutica lança um ataque jurídico e de relações públicas contra essa tentativa de controlar os preços fora de controle dos medicamentos para os mais vulneráveis do país [1,2]. A Big Pharma argumenta que o governo não tem o direito de estabelecer os preços dos medicamentos desenvolvidos por empresas privadas [3].
Mas o governo e, por extensão, os cidadãos, subsidiam fortemente o desenvolvimento de medicamentos neste país. Agora, um novo relatório surpreendente revela que os americanos financiaram o desenvolvimento de todos os dez medicamentos que estão em negociação de preços, desembolsando um total de US$ 11,7 bilhões em suas pesquisas. Somente em 2022, a Big Pharma faturou US$ 70 bilhões com a venda desses mesmos medicamentos — e agora quer manter os preços altos.
De acordo com o novo estudo do Centro de Integração da Ciência e da Indústria da Universidade de Bentley, que ainda não foi publicado, os dez medicamentos selecionados receberam de $227 milhões a $ 6,5 bilhões em financiamento dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) do governo para pesquisa crucial e fundamental [4].
“Quando o cidadão médio está pagando pelo medicamento, não se trata apenas do que está sendo pago na farmácia”, disse Fred Ledley, professor de ciências naturais e aplicadas da Bentley e autor sênior do estudo.
Esses medicamentos, que são cobertos pelo plano de benefício de medicamentos prescritos do Medicare, são tomados por 7,7 milhões de inscritos, a maioria idosos, para tratar doenças como coágulos sanguíneos, insuficiência cardíaca, diabetes, doenças autoimunes e doença renal crônica. Em 2022, os pacientes do Medicare gastaram $3,4 bilhões do próprio bolso com esses medicamentos [5], um número que aumentou 116% em um período de quatro anos.
De 2018 a 2022, os custos para os inscritos no Medicare aumentaram para nove dos dez medicamentos. O custo médio anual do Stelara, um medicamento injetável que trata de doenças autoimunes, foi o que mais aumentou, passando de $709 para $2.058 por inscrito. Para pacientes dos EUA que não fazem parte do Medicare, o Stelara pode ser consideravelmente mais caro, especialmente porque os fabricantes de medicamentos cobram preços muito mais altos neste país do que em outros lugares [6]. Um relatório de 2019 constatou que o preço normal do Stelara era de $16.600 por dose nos Estados Unidos [7], em comparação com $2.900 por dose no Reino Unido.
De acordo com o novo relatório da Universidade de Bentley, a subsidiária da Johnson & Johnson que desenvolveu o Stelara recebeu US$ 6,5 bilhões em financiamento do cidadão para ele — de longe, o maior valor entre todos os medicamentos que estão em negociação de preços.
O total de gastos do Medicare para pagar pelo uso desses medicamentos vitais pelos inscritos mais do que dobrou [8], passando de cerca de $20 bilhões em 2018 para $50,5 bilhões em 2023. O pagamento desses medicamentos específicos foi responsável por cerca de 20% de todos os gastos do Medicare com medicamentos prescritos entre o verão de 2022 e a primavera de 2023.
A Pharmaceutical Research and Manufacturers of America (PhRMA), o principal grupo de lobbying da indústria farmacêutica, disse que não poderia comentar sobre os detalhes de uma pesquisa que ela não revisou.
A Sarah Ryan, gerente sênior de assuntos públicos da PhRMA, agregou em um e-mail para nós que “mesmo que o NIH desempenhe um papel crucial na promoção da pesquisa básica, as contribuições da indústria, tanto financeiras quanto técnicas, são fundamentais para transformar as descobertas em terapias totalmente desenvolvidas para os pacientes. Existe uma grande quantidade de pesquisas que documentam a natureza dessas funções complementares, o que demonstra, de forma esmagadora, que a indústria investe significativamente mais e assume riscos muito maiores no desenvolvimento de medicamentos do que o governo.”
Depois de finalizar as negociações com os fabricantes de medicamentos, o Centers for Medicare and Medicaid Services, que supervisiona todos os programas federais de saúde, publicará os preços acordados para os medicamentos até 1 de setembro de 2024, e os novos preços entrarão em efeito a partir de 1 de janeiro de 2026.
Pesquisa Básica Essencial
O aumento do preço dos medicamentos de prescrição é um problema crítico no sistema de saúde americano. De 2008 a 2021, os preços de lançamento de novos medicamentos aumentaram 20% ao ano [9], forçando dezoito milhões de americanos a deixar de tomar doses essenciais, de acordo com uma pesquisa Gallup de 2021 de adultos de todo o país [10].
Os preços altos são particularmente prejudiciais para as famílias de baixa renda. Entre os entrevistados da pesquisa que ganham menos de $48.000 por ano, 18% relataram que eles ou alguém em sua casa haviam pulado uma dose para economizar dinheiro. Mais de cinco milhões de beneficiários do Medicare lutam para pagar suas prescrições, especialmente aqueles que não recebem bolsa por baixa renda que reduz os ses gastos [11]. Além disso, os inscritos negros e latinos relatam problemas de acessibilidade 1,5 a 2 vezes mais do que os brancos [12].
Em anos anteriores, o governo federal não tinha o poder de negociar com os fabricantes de produtos farmacêuticos os preços dos medicamentos da Medicare. Mas isso mudou graças à Lei de Redução da Inflação [13], assinada pelo presidente Joe Biden em 2022, que permitiu negociações de preços de medicamentos do Medicare e outras medidas de redução de custos farmacêuticos. A legislação já limitou os gastos diretos com insulina a $35 por mês para os beneficiários do Medicare [14]. Como o Medicare expande suas negociações de preços para abranger oitenta medicamentos até 2030, estima-se que a lei economize $237 bilhões para o governo até 2031 [15].
Depois que o governo anunciou seus preços iniciais para os dez primeiros medicamentos em negociação [16], uma análise do grupo defensor de políticas públicas Center for American Progress concluiu que o processo poderia reduzir os preços dos medicamentos em até $6.500 por mês [17].
Enquanto os interesses farmacêuticos lançavam sua ofensiva contra essas negociações de preços, um relatório publicado pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA em dezembro passado revelou que, dos dez medicamentos selecionados, sete receberam pelo menos uma forma de apoio federal como parte de sua pesquisa e desenvolvimento [18].
Mas, o novo relatório do Center for Integration of Science and Industry (Centro da Integração da Ciência e da Indústria) conclui que todos os dez medicamentos receberam financiamento do governo federal. Isso porque, enquanto o relatório do governo se concentrou apenas no dinheiro destinado à pesquisa aplicada, ou seja, nos esforços para desenvolver um determinado medicamento, Ledley e seus colegas também analisaram o financiamento para a ciência básica — a pesquisa chave e fundamental que identifica um alvo biológico, como uma proteína ou um gene, que pode estar ligado a uma doença e é a primeira etapa do desenvolvimento de medicamentos.
“Quando a maioria das pessoas olha para o que o governo está pagando, estão olhando somente para a ciência aplicada”, disse Ledley.
A ciência básica é fundamental para o desenvolvimento de medicamentos transformadores, segundo um estudo de 2018 [19]. Os pesquisadores examinaram vinte e oito medicamentos importantes aprovados pela Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA entre 1985 e 2009 e descobriram que 80% deles podiam ser rastreados até a pesquisa básica que buscava entender um processo biológico ou uma doença.
Segundo o estudo da Universidade de Bentley, o financiamento do NIH para os dez medicamentos do Medicare que foram postos em negociação de preços variou de $228 milhões a $6,5 bilhões por medicamento. Aqui está simplificado:
Os detalhes do financiamento governamental destinado à pesquisa fundamental para o último medicamento da lista —Novolog, que trata de diabetes tipo 1 e tipo 2— não estavam disponíveis porque a pesquisa básica sobre insulina ocorreu há décadas. O NIH relatou que gastou $4,5 milhões em pesquisa aplicada para o desenvolvimento do Novolog.
Enquanto a maioria dos subsídios do governo foi destinada à ciência básica por trás desses medicamentos, o NIH também gastou mais de $250 milhões em pesquisa aplicada para esses medicamentos, o que corresponde a cerca de metade do custo total de trazer os medicamentos para o mercado.
Esse financiamento público economizou bilhões para a indústria farmacêutica em despesas de pesquisa e desenvolvimento. Agora, esses medicamentos estão dando bilhões às empresas farmacêuticas. Somente em 2022, os medicamentos renderam aos seus fabricantes mais de $70 bilhões em faturamento total, de acordo com nossa análise. E alguns desses medicamentos estão no mercado há vinte e cinco anos.
“O que torna a ganância da indústria farmacêutica tão repreensível é o fato de que o povo americano está pagando duas vezes por alguns dos medicamentos de prescrição mais caros do mercado: primeiro por meio de seus impostos e uma segunda vez no balcão da farmácia”, disse o senador de Vermont Bernie Sanders ao Comitê de Saúde, Educação, Trabalho e Pensões do Senado dos EUA no ano passado [20].
A Ledley não concorda com a ideia de “pagar duas vezes”, já que ele e seus colegas estimam que a indústria farmacêutica está cobrindo a maior parte dos custos durante a fase de pesquisa aplicada e desenvolvimento. Entretanto, quando se trata do preço dos medicamentos, “achamos que é preciso incluir na equação esse financiamento público para o desenvolvimento do medicamento”, disse Ledley.
Referências