As universidades de pesquisa, muitas delas públicas, uniram forças com empresas farmacêuticas e firmas de Wall Street para combater os novos esforços do governo de reduzir os preços descontrolados dos medicamentos, dizendo que as regulamentações poderiam reprimir a inovação.
Mas é provável que essas universidades também estejam preocupadas com o fato de as revisões nos preços dos medicamentos prejudicarem seus lucros. Caso em questão: a Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA), arrecadou desapercebidamente mais de um bilhão de dólares em pagamentos pelo Xtandi, um medicamento contra o câncer que salva vidas, desenvolvido com a ajuda de financiamento estatal e que agora custa $200.000 por ano aos pacientes americanos.
A universidade está entre o grupo que trabalha para impedir que o governo reduza o custo de medicamentos prescritos, por exemplo o Xtandi, que foi desenvolvido com o dinheiro do povo.
Desde que esse medicamento que foi o primeiro de seu tipo contra o câncer de próstata foi aprovado para uso em 2012, a UCLA recebeu US$ 1,6 bilhão em royalties, receitas de patentes e reembolsos graças ao desenvolvimento do Xtandi, de acordo com informações obtidas pelo The Lever por meio da Lei de Registros Públicos da Califórnia (California Public Records Act).
À medida em que o preço do Xtandi aumenta e as demandas para reduzir o seu custo crescem, a instituição pública— que existe devido a subvenções federais [1] e é mantida por financiamento do governo— tem visto suas taxas de royalties crescerem significativamente, aumentando em $ 11,6 milhões de 2021 para 2022.
Esses ganhos são adicionais aos $520 milhões que a UCLA recebeu em 2016 após a venda [2]de alguns de seus direitos de royalties— e indicam que a UCLA tem interesse em impedir novas mudanças nos preços dos medicamentos, permitindo que o preço do Xtandi aumente mais ainda.
“Para a UCLA, isso tem sido um presente que continua dando fruto”, disse Robert Sachs, que recebeu o Xtandi depois de ser diagnosticado com câncer de próstata em estágio avançado e fez uma petição às agências governamentais para reduzir o preço do medicamento [3].
Embora os pesquisadores mereçam uma compensação pelo desenvolvimento de medicamentos revolucionários, os especialistas dizem que a oposição até mesmo a reformas limitadas nos preços dos medicamentos afeta os pacientes e seu acesso a medicamentos que salvam vidas.
Em dezembro do ano passado, o governo Biden anunciou [4] planos de usar uma lei federal que existe há muito tempo para reduzir o preço de medicamentos controlados desenvolvidos com dinheiro do povo. A Lei Bayh-Dole de 1980 permite que as agências do governo “intervenham” e licenciem patentes de medicamentos de marca para fabricantes de medicamentos genéricos para que vendam o medicamento a um preço mais razoável
Em resposta, o sistema da Universidade da Califórnia— junto a gigantes farmacêuticos, fabricantes de medicamentos genéricos e empresas de capital de risco [5]— argumentou que os direitos de intervenção não se destinavam a abordar os preços altos dos medicamentos e que isso prejudicaria a inovação.
A intervenção “não é apoiada pelo próprio estatuto e os autores (Senadores Bayh e Dole) esclareceram que essa não é a intenção legislativa”, escreveu a Universidade da Califórnia em uma carta de 2021 sobre os direitos [6]. “Qualquer possibilidade aparente de uso impróprio ou incerteza adicional sobre a interpretação dessa disposição terá efeitos prejudiciais consideráveis sobre a capacidade da universidade de colaborar ou licenciar invenções financiadas pelo governo federal para um colaborador da indústria.”
Steve Knievel, especialista em questões políticas que afetam o preço dos medicamentos e o acesso a eles na organização de defesa ao consumidor Public Citizen, diz que essa oposição provavelmente vem dos escritórios de transferência de tecnologia acadêmica das universidades, que administram a propriedade intelectual dos pesquisadores e fazem parcerias com empresas de fora para comercializar invenções. Esses escritórios “veem o licenciamento de invenções feitas em universidades como uma potencial forma de obter grandes lucros”, disse Knievel.
Portanto, medicamentos mais caros significam mais dinheiro para a universidade. “A preocupação deles é: se os medicamentos forem mais baratos, receberemos menos em nossos pagamentos de royalties das empresas farmacêuticas”, disse o economista Dean Baker, co fundador do think tank Center for Economic and Policy Research (Centro para Pesquisa Econômica e de Políticas).
Em resposta a um pedido de comentário, o diretor sênior de comunicações da UCLA Health, Phil Hampton, escreveu em um e-mail que, como observado no comunicado à imprensa da universidade em 2016 [7], “a UCLA está usando parte do faturamento para financiar bolsas de estudo de graduação e de pós-graduação. Além disso, inventores e o Howard Hughes Medical Institute recebem um pedaço do lucro”.
“Nada razoável E, De Fato, Absurdo”
A pesquisa que criou a base para o Xtandi surgiu no início dos anos 2000 [8], graças a subvenções dos Institutos Nacionais de Saúde (National Health Institutes, NIH) e do Exército dos EUA. O químico Michael Jung da UCLA desenhou uma molécula chamada enzalutamida [9], conhecida comercialmente como Xtandi. Com a ajuda do então professor de medicina da UCLA, Charles Sawyers, os dois descobriram que a molécula pode bloquear a absorção celular de andrógenos [10]— um grupo de hormônios que inclui a testosterona e fomenta o crescimento das células do câncer de próstata [11].
Em 2005, a UCLA licenciou três patentes do Xtandi para a empresa biofarmacêutica Medivation, que depois assinou um acordo global com a Astellas Pharma, do Japão, para desenvolver e comercializar o medicamento. Em 2012, a Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA aprovou o medicamento [12], e a pílula, que é bastante eficaz [14]para retardar o crescimento do câncer de próstata, agora é consumida por centenas de milhares de pacientes em todo o mundo [13]. Em 2016, o gigante farmacêutico Pfizer gastou $14 bilhões para adquirir a Medivation [15], acrescentando o Xtandi à sua lista cada vez mais extensa de medicamentos contra o câncer.
Atualmente, as vendas globais do Xtandi pela Pfizer e Astellas Pharma são de $5 bilhões por ano. O mercado dos EUA, onde o Xtandi custa $136,50 por comprimido de 40 miligramas, é o responsável por cerca de metade dessas vendas [16]. Em 2022, o Medicare e o Medicaid gastaram $2,6 bilhões com o medicamento.
Apesar do financiamento público que contribuiu para a criação do Xtandi— e do fato de que todas as três patentes do< medicamento [17]atualmente licenciadas para a Pfizer e a Astellas Pharma declaram que "O governo tem direitos sobre esta invenção" —o medicamento tem um preço médio no atacado de $199.290 por ano en 2023 [18], o que o torna inacessível para muitos pacientes. O preço aumentou em quase $10.000 desde janeiro de 2022 [19]. No Japão, de onde é a Astellas Pharma, o medicamento custa menos de um quinto do que o preço no atacado nos EUA [20].
Como o primeiro medicamento desse tipo no mercado, o preço exorbitante do Xtandi abriu um precedente para outros medicamentos bloqueadores de andrógenos para o câncer de próstata, disse Sachs. Por exemplo, a darolutamida [21], produzida pela empresa farmacêutica finlandesa Orion Corporation e pela gigante farmacêutica Bayer, custa $14.303 por 120 comprimidos [22].
Isso é uma tentativa de explorar a “fraca resposta dos Estados Unidos ao preço excessivo dos medicamentos”, escreveram grupos de defesa em uma carta de 2016 ao NIH [23], ao Departamento de Defesa e ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos, solicitando que o governo usasse os direitos de intervenção para reduzir o custo do Xtandi.
“Em nossa opinião, não nada razoável e, de fato, é um absurdo que os preços sejam mais altos nos Estados Unidos do que em países estrangeiros para um medicamento desenvolvido na UCLA com subvenções do governo federal”, escreveram os grupos na carta.
O NIH e o Departamento de Defesa rejeitaram o pedido de intervenção e, em seguida, os preços do Xtandi subiram, de acordo com James Love, diretor da Knowledge Ecology International, que vem acompanhando a luta da intervenção há anos.
Durante esse período, uma empresa farmacêutica canadense também se propôs a vender versões genéricas do Xtandi para o Centers for Medicare and Medicaid Services (CMS) por $3 por comprimido (o preço do Medicare na época era de $69,41 por comprimido) [24]. Andy Slavitt, o então administrador do CMS, que administra todos os programas federais de saúde, recusou a oferta [25].
Os apoiadores da intervenção voltaram a luta a partir de 2019, quando as pessoas com câncer de próstata, incluindo Sachs, solicitaram ao Exército dos EUA [26], ao Departamento de Defesa [27] e ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos [28] a subvenção dos direitos de intervenção para as patentes do Xtandi. Dezenove organizações [29] e 25 membros do Congresso [30] também pediram ao secretário de Saúde e Serviços Humanos, Xavier Becerra, que tomasse ação.
Porém, essas solicitações foram negadas outra vez [31]. De acordo com uma carta de 2023 do NIH [32], a “aplicação prática” do Xtandi, com base no Código dos EUA para a lei de patentes, é ” comprovada pela ‘fabricação, prática e operação’ da invenção e pela ‘disponibilidade e uso da invenção pelo público'”. Assim, a agência alegou que a Universidade da Califórnia “não falha no requisito de levar o Xtandi para aplicação prática, já que o medicamento é fabricado e está no mercado da mesma forma que outros medicamentos de prescrição estão”.
A definição de “aplicação prática” segundo o Código dos EUA sobre a lei de patentes [33] também estabelece que “na medida permitida pela lei ou pelos regulamentos do governo”, a invenção deve ser disponibilizada “ao público em condições razoáveis”, apesar de o NIH não ter mencionado essa qualificação em sua carta.
“O que o governo Biden está querendo dizer é que cobrar os residentes dos EUA de três a seis vezes mais caro do que qualquer outro país de alta renda é razoável”, escreveu Love em um post sobre a rejeição do NIH aos direitos dos intervenção [34].
Essa rejeição não interrompeu os esforços para reduzir os preços do Xtandi: Em 9 de abril, a Knowledge Ecology International e outros grupos enviaram uma carta à CMS [35] exigindo que o governo Biden utilizasse sua autoridade prevista na lei de patentes para “autorizar empresas capacitadas a fabricarem e venderem versões genéricas” do Xtandi [36].
Os autores observaram que nove fabricantes de medicamentos, muitos dos quais são na Índia, estão atualmente produzindo versões genéricas do Xtandi, e alguns desses fabricantes de medicamentos têm uma aprovação provisória da FDA para vender seus medicamentos nos EUA.
Um Prêmio Bilionário
Enquanto isso, a UCLA ganhou milhões de dólares em pagamentos— principalmente em royalties— com as vendas do Xtandi a cada ano. De 2012, quando o medicamento foi aprovado pela FDA, até o verão de 2023, os pagamentos trimestrais de royalties cresceram de $564.000 para $48 milhões, um crescimento de 85 vezes, de acordo com os dados analisados pelo The Lever.
Em 2016, a universidade também vendeu uma parte dos direitos de royalties dos quais era co-proprietária por $1,1 bilhão para a Royalty Pharma, uma empresa que compra royalties biofarmacêuticos para receber futuros pagamentos [37]. Do total, a UCLA recebeu $520 milhões, que foram aplicados em um portfólio que deverá gerar “aproximadamente $60 milhões por ano até 2027”, de acordo com um comunicado à imprensa da universidade [38].
O remanescente dos lucros foi dividido entre os inventores [39], incluindo Jung e Sawyers, e o Howard Hughes Medical Institute, em Maryland, onde Sawyers também trabalhava quando o medicamento foi inventado.
Esses pagamentos somam bilhões de dólares que o sistema da Universidade da Califórnia recebe do governo federal, do estadual e do local. Durante todo o ano letivo de 2022-2023, as 10 universidades do sistema receberam $5,5 bilhões em dinheiro público, sendo que a UCLA recebeu mais de um bilhão de dólares [40].
Apesar de benefícios imensos de dinheiro do cidadão, o sistema da Universidade da Califórnia continua tentando bloquear o uso dos direitos de intervenção pelo governo, gastando $1,2 milhão em lobby sobre a Lei Bayh-Dole, questões de propriedade intelectual e transferência de tecnologia e outros assuntos no ano passado, de acordo com os registros de lobby.
A Universidade da Califórnia, em conjunto com a Astellas Pharma e a Pfizer, chegou ao ponto de processar um fabricante de medicamentos com da Índia em 2022 que queria vender versões genéricas do Xtandi, alegando que esses genéricos iriam infringir uma das patentes do medicamento [41]. No ano passado, o fabricante indiano do medicamento retirou todos os pedidos de patente do Xtandi.
Isso aconteceu depois que a instituição acadêmica assinou um conjunto histórico de diretrizes de licenciamento ético em 2007 [42], que dizia que as universidades deveriam encontrar “uma maneira de compartilhar os benefícios do que aprendemos em nível global, a preços sustentáveis e acessíveis” e “construir acordos de licenciamento de forma que irão garantir que essas populações desfavorecidas tenham acesso de baixo ou nenhum custo a quantidades adequadas dessas inovações médicas”.
Oposição Acadêmica
A UCLA não é a única universidade de pesquisa que se opõe aos direitos de intervenção. Outras incluindo a Universidade de Stanford [43] e a Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill [44], também enviaram comentários ao governo criticando a iniciativa de preços justos de medicamentos.
Os direitos de intervenção “resultarão no desencorajamento de parceiros do setor privado de licenciar avanços feitos por meio de pesquisas financiadas pelo governo federal”, escreveu um grupo de associações de ensino, incluindo a Association of Public and Land-grant Universities, em resposta [45] à versão preliminar da estrutura de direitos de intervenção proposta pelo National Institute of Standards of Technology no último mês de dezembro [46]. “Recomendamos que a administração revogue completamente e rapidamente essa estrutura.”
A Bayh-Dole Coalition, um grupo de universidades de pesquisa e outras organizações científicas, também se posiciona firmemente contra os direitos de intervenção, afirmando em seu comentário que a “estrutura preliminar está sendo apresentada como uma arma para reduzir os custos dos medicamentos. Isso não é verdade”, e a “estrutura proposta viola tanto a carta quanto o espírito da Lei Bayh-Dole causaria danos incalculáveis às empresas, aos trabalhadores e aos consumidores americanos se implementada” [47].
Embora a Lei Bayh-Dole seja essencial para ajudar as universidades a licenciar suas invenções para o setor privado, a criação de medicamentos de grande sucesso como o Xtandi— para o qual os direitos de intervenção foram desenhados— é muito rara.
“Houveram realmente alguns casos em que a universidade obteve uma pequena taxa de licenciamento de algumas patentes importantes de um medicamento de grande sucesso que pode gerar um grande faturamento”, disse Knievel, da Public Citizen. No entanto, ele acrescentou: “A maioria das subvenções universitárias não leva a esse tipo de invenção. É como se eles estivessem jogando na loteria”.
Algumas outras instituições acadêmicas tiveram muita sorte medicamentos. Em 2007, a Northwestern University desenvolveu o medicamento para dor e epilepsia Lyrica, que foi comercializado pela Pfizer e gerou um pagamento de $700 milhões da Royalty Pharma [48]— a mesma empresa que comprou os direitos de royalties do Xtandi da UCLA. Nesse mesmo ano, a Universidade de Nova Iorque recebeu $ 650 milhões da Royalty pelo seu medicamento para artrite Remicade [49].
Devido ao fato de que a criação de um medicamento de sucesso é incomum— e às muitas regulamentações envolvidas— Knievel disse que os direitos de intervenção do governo só seriam usados em caso de raras circunstâncias. Então, ele não acredita que as reformas dos medicamentos prejudicariam a inovação ou destruiriam a indústria farmacêutica.
“Se pedirmos somente o mínimo de justiça, as empresas manterão a capacidade de serem altamente lucrativas e ainda teremos muitos medicamentos novos dos quais precisamos”, disse Knievel.
Referências