Foi publicado um artigo na New Yorker descrevendo como as organizações de pacientes com doenças terminais contribuíram para a aprovação de medicamentos sem evidências suficientes de eficácia e segurança.
O artigo usa como ponto em comum a aprovação do Relyvrio para a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). Depois de descrever como as associações de pacientes com doenças graves e sem tratamento se organizaram para levantar fundos, financiar P&D de medicamentos e fazer lobbying para a aprovação de medicamentos que lhes oferecem alguma esperança, o artigo descreve como suas ações influenciaram a regulamentação das pesquisas (por meio de apoiadores no Congresso) e a forma como a FDA tem tomado decisões. Além de apresentar os fatos e as perspectivas dessas organizações, o artigo inclui as vozes de especialistas que questionam se a aprovação acelerada de alguns produtos traz algum benefício [1]. Nos parágrafos a seguir, estão reunidas algumas das ideias mais importantes.
Em 2014, sem muita preparação, surgiu o desafio do balde de gelo para arrecadar dinheiro para a Fundação que defende os interesses de pacientes com ELA (ALS Foundation). Existem cerca de 30.000 pacientes com ELA nos EUA. Quando a campanha do desafio foi lançada, a fundação ELA arrecadou $200 milhões, algo nunca visto antes, e triplicou o valor que estava alocando para pesquisas. Naquela época, o único medicamento disponível havia sido aprovado em 1995.
Dois estudantes da Universidade de Brown que queriam retardar a progressão de doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson, fundaram a empresa Amylyx, que tem se dedicado a estudar tratamentos para ELA. O casal não tinha muita ideia do que estava fazendo e contou com a ajuda de um especialista em Alzheimer. Eles tiveram sorte e os primeiros resultados de seus estudos mostraram resultados positivos; embora tenham patenteado um produto (amx0035), não conseguiram atrair o interesse dos investidores. O Dr. Merit Cudkowicz, Professor de Neurologia da Harvard Medical School e Diretor de Serviços de Neurologia do Massachusetts General Hospital, os convenceu a prosseguir com a ELA. Eles concordaram, em parte devido ao interesse e ao altruísmo dos pacientes afetados, e também porque, em comparação com os estudos sobre a doença de Alzheimer, o número de pacientes a serem recrutados seria muito menor.
Cudkowicz conseguiu que a Amylyx recebesse parte dos fundos levantados pela Fundação ELA, o que ajudou a empresa a atrair o interesse dos investidores. A Amylyx realizou um ensaio de Fase II com o amx0035, que inscreveu 137 pacientes e durou seis meses, com um período de extensão no qual todos os pacientes receberam tratamento. Os resultados do ensaio sugeriram que o amx035 retardou a deterioração em aproximadamente 25%. Além disso, os pacientes que não receberam placebo sobreviveram, em média, cinco meses mais. O medicamento apresentou poucos efeitos colaterais, com exceção de um pouco de desconforto gastrointestinal. Ainda assim, os resultados não foram conclusivos. Em um editorial, dois pesquisadores externos informaram que os “dados preliminares tentadores” deveriam ser interpretados com cautela: o efeito era “modesto” e seria necessário um ensaio maior para confirmá-lo. Cudkowicz estava de acordo.
Historicamente, a FDA tem requerido dois ensaios “adequados” antes de aprovar um medicamento, mas para fazer outro ensaio seriam necessários pelo menos três anos adicionais. Porém, para os pacientes com ELA, os resultados foram animadores e eles começaram a se organizar. Brian Wallach, um homem de 40 anos com conexões políticas, foi diagnosticado com ELA enquanto trabalhava na Casa Branca e fundou a Eu sou ALS (I am ALS), uma organização “centrada no paciente e dirigida pelo paciente”. De acordo com Wallach, não havia necessidade de buscar a perfeição antes de oferecer qualquer tratamento à população afetada.
A FDA
Nos EUA, a regulamentação de medicamentos começou a ser reforçada em 1937, depois que cerca de 100 pessoas, muitas delas crianças, morreram após consumir um elixir contaminado com anticongelante. A FDA tinha o poder de garantir que os medicamentos não fossem desnecessariamente prejudiciais antes de serem comercializados. Porém, as poções inúteis proliferaram. Em 1961, a FDA se recusou a aprovar a talidomida, apesar de muita pressão, e depois do que aconteceu na Europa, a confiança do público na instituição aumentou e o Congresso ampliou radicalmente o mandato da agência, dando-lhe autoridade não apenas para monitorar a segurança, mas também a eficácia dos medicamentos.
Contudo, uma década mais tarde, os defensores do livre mercado começaram a ver a FDA como intrusiva demais, atrasando a chegada dos medicamentos ao mercado. No final dos anos 80, os grupos de defesa dos pacientes com HIV/AIDS (Act Up) se mobilizaram para exigir acesso rápido aos medicamentos, independentemente de sua eficácia estando comprovada ou não. Para esses pacientes, o problema era certo e, nesse contexto, eles estavam dispostos a aceitar os riscos desconhecidos de qualquer produto que pudesse aliviar sua situação. Começaram a falar muito sobre o direito do paciente à autonomia, entendido como a capacidade de recusar tratamentos aprovados e de se submeter a tratamentos não ortodoxos.
Para acalmar os ânimos, em 1992, a FDA introduziu a via de aprovação acelerada, que poderia ser concedida a um produto que demonstrasse ter um impacto em variáveis indiretas ou complementares, mesmo que não tivesse demonstrado proporcionar um benefício clínico. Esses produtos teriam que passar por mais ensaios antes de receber a aprovação final. Atualmente, sabe-se que muitos desses estudos confirmatórios não são realizados ou são realizados depois do acordado. Kesselheim, professor de Harvard, analisou recentemente as duas últimas décadas de aprovações aceleradas em oncologia e descobriu que apenas cerca de um quinto dos medicamentos aprovados demonstraram ter um impacto significativo na sobrevivência. Os pacientes com câncer agora podem escolher entre uma série de opções muito caras que podem fazer pouco ou nada por eles.
A agência também formalizou seu compromisso com o “acesso ampliado”, para que os pacientes com doenças graves ou potencialmente fatais sem opções pudessem obter medicamentos em pesquisa.
Em 1997, o Congresso permitiu que a FDA aprovasse medicamentos com base nos resultados de um único ensaio. Assim, o foco da agência passou de evitar que os pacientes tomassem medicamentos inseguros e/ou ineficazes para facilitar o acesso do consumidor a medicamentos que podiam ser úteis.
As tácticas e sucessos do Eu sou ELA e outros grupos de defesa de pacientes
Wallach e sua esposa estudaram a experiência de grupos que lutavam pelos direitos dos pacientes com HIV/AIDS e aplicaram suas técnicas à ELA. Um dos objetivos era mudar a narrativa pessimista em torno da doença, e eles também queriam garantir uma presença constante em Washington DC.
A Eu sou ELA contratou uma empresa de lobbying e ajudou a formar um grupo de defesa da ELA no Congresso, que aprovou uma lei para alocar US$100 milhões por ano para pesquisas sobre a doença. Wallach entregou pessoalmente uma carta aberta à FDA solicitando tratamentos que estavam “presos no processo de revisão”. A Eu sou ELA se destacou por sua busca incessante por qualquer tratamento que parecesse prometer.
A FDA havia deixado claro que se esperava que a Amylyx concluísse outro ensaio, mas Wallach sabia que a agência poderia aprovar o medicamento imediatamente. A certeza científica era um luxo que somente as pessoas saudáveis podiam se dar. Ele e outros pacientes já estavam comprando uma versão do produto em farmácias galênicas (que preparam fórmulas), por cerca de US$ 7.000 por ano. A ALS Foundation, que alguns pacientes haviam criticado por não defender agressivamente outros medicamentos experimentais, lançou uma campanha por e-mail. Os membros se reuniram com os órgãos reguladores, incluindo o diretor interino da FDA. De acordo com Wallach, era importante que os tomadores de decisão e as autoridades conhecessem os afetados.
No final de maio de 2021, a Fundação ALS convocou um evento chamado Reunião de Ação Não Podemos Esperar. Um ativista contou que uma pesquisa comunitária havia mostrado que os pacientes tinham um “nível muito alto de aceitação” dos riscos potenciais de um medicamento, não queriam morrer enquanto esperavam por algo perfeito.
Wallach conseguiu uma audiência no Congresso e recebeu apoio do Congresso para que a FDA permitisse o acesso ao amx0035. Entre outras coisas, Wallach disse: “Quando você é diagnosticado com ELA, eles te dizem que você tem entre dois e cinco anos de vida. Portanto, se demorar quatro anos para estar no mercado, todos os pacientes com ELA, inclusive nós, estaremos mortos”. Dois meses depois, a FDA revogou sua posição e convidou a Amylyx a apresentar sua solicitação de comercialização.
Os defensores dos pacientes com AIDS ajudaram a adaptar o sistema de saúde aos desejos dos pacientes. Hoje, eles são consultados em todos os estágios do processo de desenvolvimento e aprovação de medicamentos: ajudam a moldar as estratégias de financiamento nos Institutos Nacionais de Saúde e contribuem para discussões técnicas sobre o projeto de ensaios e medidas de resultados. Assim, os pacientes sentam-se à mesa com seu próprio doutorado: “”histórico pessoal da doença”. Surgiram muitas organizações de defesa dos pacientes, e algumas foram extremamente afortunadas em suas decisões estratégicas: a Cystic Fibrosis Foundation financiou pesquisas de medicamentos que resultaram em medicamentos mágicos para alguns pacientes, transformando uma sentença de morte em uma condição manejável.
Muitos grupos de defesa de pacientes contam com quantias exuberantes de financiamento: no ano passado, a receita da Associação de Alzheimer foi de cerca de US$500 milhões. Um estudo publicado no The New England Journal of Medicine descobriu que pelo menos 83% dos maiores grupos recebem dinheiro das empresas farmacêuticas.
Os grupos mais ricos e mais bem coordenados têm vantagens significativas: as organizações de defesa do câncer de mama têm sido particularmente fortes e demonstraram ter tempos de aprovação muito mais rápidos do que os grupos dedicados ao câncer de próstata, que tem uma prevalência parecida, ou do que o câncer de pulmão, que é mais mortal.
Em 2002, pacientes com câncer de pulmão se reuniram em apoio ao Iressa, um medicamento que enfrentou críticas consideráveis da FDA. O medicamento foi aprovado e ainda é prescrito para alguns pacientes. Em 2016, pais de meninos com distrofia muscular de Duchenne pressionaram a FDA para que dessem a luz verde a um medicamento que havia sido estudado em um único ensaio não controlado envolvendo apenas 12 meninos. Centenas de apoiadores compareceram à reunião do grupo consultivo da FDA, incluindo várias crianças em cadeiras de rodas, e o produto foi aprovado.
Porém, o papel dos grupos de defesa começou a ser questionado. Em junho de 2021, a FDA anunciou a aprovação acelerada do Aduhelm, o primeiro novo tratamento para Alzheimer em dezoito anos. O Aduhelm reduziu os níveis de placas amiloides no cérebro, mas pareceu fazer pouco ou nada para interromper ou reverter a progressão da doença. Além disso, apresentava o risco de efeitos adversos graves, incluindo hemorragia cerebral. A Associação de Alzheimer, que naquele ano havia arrecadado cerca de meio milhão de dólares do patrocinador do medicamento (Biogen), incentivou seus membros a defenderem o medicamento. O comitê assessor votou contra a aprovação do medicamento, mas a FDA decidiu aprovar.
Três membros do comitê consultivo pediram demissão, incluindo Aaron Kesselheim, professor da Faculdade de Medicina de Harvard, que disse que a decisão foi talvez “a pior decisão de aprovação que a FDA já tomou”, e a viu como parte de uma longa guerra de desgaste. “Nos últimos anos, sob pressão constante da indústria farmacêutica e dos grupos de pacientes que a indústria financia, a FDA reduziu progressivamente seus níveis de exigência”, escreveu ele.
Em março de 2022, a FDA convocou um comitê assessor para discutir o pedido da Amylyx. Os membros foram convidados a votarem se os resultados obtidos até o momento “estabelecem uma conclusão” de que o medicamento é “eficaz”. Os funcionários da agência, em seus documentos informativos, foram educados, respeitosos e inequívocos: a resposta, no que lhes dizia respeito, foi não.
Segundo a agência, o ensaio teve vários problemas. Os recrutados foram informados de que poderiam ter efeitos colaterais gastrointestinais, e sendo assim, poderiam ter adivinhado se estavam recebendo o produto real ou um placebo, e isso é importante porque as medidas de resultado foram autorrelatadas. Outro problema foi o equilíbrio entre os grupos experimental e placebo, especialmente durante o período de extensão, quando os participantes do grupo placebo começaram a tomar o produto experimental, porque os participantes que mudaram do placebo para o medicamento eram, em média, mais saudáveis do que os que desistiram do ensaio, o que poderia ter exagerado os benefícios. Alguns resultados também foram comparados a controles “externos”, ou seja, dados de pacientes de décadas anteriores, quando o padrão geral de tratamento era mais baixo. Mais importante ainda, a FDA propôs um método de análise estatística, mas a Amylyx optou por usar um método alternativo. Quando a FDA passou os dados para sua própria análise, os resultados já não eram estatisticamente significativos.
A agência se mostrou relutante em aceitar o aparente benefício de sobrevivência de cinco meses. A agência não descartou a possibilidade de que o medicamento pudesse ter algum efeito. Mas o requisito para aprovação não é “promissor”; é “evidência substancial de eficácia”. Cudkowicz disse: “No final, simplesmente não sabíamos quem tinha razão. Esse foi um estudo realmente pequeno que nunca foi desenhado para fazer o que foi pedido”.
Os pacientes, por sua parte, pareciam incapazes de acreditar que essa discussão estava ocorrendo. Eles sentiam como se a doença os estivesse enterrando vivos enquanto a FDA fazia um escândalo sobre intervalos de confiança e valores P.
Os depoimentos dos pacientes eram muito convincentes, mas não se baseavam em argumentos científicos. No final, o comitê votou contra o medicamento, por 6 a 4. A FDA acabou aprovando, mas não se sabe se ele trará benefícios para as pessoas que o consumirem.
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