Uma investigação de quase seis anos descobriu que muitas das mortes de cerca de 3.000 pessoas e a infecção de mais de 30.000 outras com diferentes vírus poderiam ter sido evitadas.
O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, emitiu na segunda-feira um contundente pedido de desculpas às vítimas e às famílias de um dos piores fracassos sanitários do país, depois que um relatório devastador revelou que as contaminações sanguíneas que mataram 3.000 pessoas e infectaram mais de 30.000 outras poderiam ter sido evitadas em grande medida.
“Este é um dia de vergonha para o Estado britânico”, disse Sunak aos legisladores na Câmara dos Comuns, onde apresentou um “pedido de desculpas sincero e inequívoco” pelo que ele chamou de falhas repetidas dos agentes britânicos.
“Sinto muito mesmo”, disse ele, poucas horas após a divulgação de um relatório muito aguardado [1] que identificou um “catálogo de falhas” ao longo de duas décadas por parte de médicos e funcionários do governo britânico, a maioria delas erros evitáveis que foram ocultados.
O relatório de 2.000 páginas é o produto de quase seis anos de investigações que o governo britânico ordenou em 2017 (https://www.nytimes.com/2017/07/11/world/europe/uk-contaminated-blood-scandal-theresa-may.html?searchResultPosition=3), após décadas de pressão das vítimas e de suas famílias [2].
“O relatório de hoje mostra um fracasso moral de décadas no coração de nossa vida nacional”, disse Sunak. “Em todos os níveis, as pessoas e as instituições nas quais depositamos nossa confiança falharam da maneira mais dolorosa e devastadora.”
Ele prometeu que o governo pagaria uma “indenização abrangente” aos infectados e suas famílias, mas disse que os detalhes desses planos seriam publicados na terça-feira. Ele também prometeu que o governo estudaria as “extensas recomendações” do relatório para evitar que as falhas se repitam.
O governo do Reino Unido concordou, em 2022, em distribuir um pagamento provisório de £100.000 libras, ou US$ 127.000, para cada vítima.
O relatório independente responsabiliza o Serviço Nacional de Saúde britânico, identificando “falhas sistêmicas, coletivas e individuais” por parte das autoridades quando dezenas de milhares de pessoas foram infectadas por transfusões de sangue contaminado ou produtos sanguíneos contaminados entre os anos 1970 e o início dos anos 1990. As autoridades da época e os sucessivos governos se recusaram a reconhecer essas falhas, de acordo com o relatório.
“Para salvar as aparências e economizar, grande parte da verdade foi ocultada”, afirma o relatório.
De acordo com o relatório, mais de 26.000 pessoas contraíram hepatite C por meio de transfusões de sangue entre 1970 e 1991. Entre aqueles que receberam produtos sanguíneos contaminados, cerca de 1.250 pessoas foram infectadas pelo HIV, incluindo cerca de 380 crianças; outras 5.000 desenvolveram uma forma crônica de hepatite C.
“Esse desastre não foi um acidente”, disse Brian Langstaff, ex-juiz da Suprema Corte que liderou as investigações, em uma coletiva de imprensa em Londres repleta de vítimas da contaminação e de suas famílias. Eles aplaudiram e vibraram quando Langstaff expôs o que, segundo ele, foi uma série de falhas terríveis cometidas por funcionários da saúde e do governo britânico que “não priorizaram a segurança dos pacientes”.
“As pessoas confiaram nos médicos e no governo para mantê-las seguras, e essa confiança foi traída”, disse Langstaff. “O Serviço Nacional de Saúde e os sucessivos governos agravaram a agonia ao se recusarem a aceitar que algo estava errado.”
As vítimas de contaminação sanguínea e suas famílias expressaram alívio com as descobertas do relatório, mas também insatisfação com o fato de ter levado tanto tempo. Algumas vítimas morreram antes que o inquérito fosse concluído – ou mesmo iniciado – assim como alguns dos funcionários que poderiam ter sido responsabilizados.
Andy Evans, um ativista veterano que tinha 13 anos quando descobriu que uma transfusão de sangue para sua hemofilia havia transmitido a (https://www.theguardian.com/uk-news/article/2024/may/17/my-mum-had-to-tell-me-i-had-hiv-the-former-blood-transfusion-poster-boy-campaigning-for-infected-victims) ele o HIV, disse que se sentiu “validado e reivindicado”.
“Questionaram e negaram o que aconteceu conosco durante gerações”, disse Evans. “Este relatório põe um fim a isso”.
Algumas das falhas destacadas no relatório ocorreram antes do nascimento de Sunak, mas Langstaff disse que, até recentemente, os governos haviam demonstrado uma “atitude defensiva institucional”, minimizando ou negando os erros do passado, mesmo quando os pacientes infectados continuavam morrendo.
Em alguns casos, disse Langstaff, os documentos foram “deliberadamente e injustamente destruídos em uma tentativa de dificultar que a verdade fosse revelada”.
A investigação não tinha podere para recomendar processos penais e não ficou imediatamente claro se o relatório levaria a algum processo.
“Se existirem provas claras e houver um canal para isso, então, obviamente, é algo que o governo terá que abordar”, disse John Glen à rádio LBC na segunda-feira, o funcionário do governo britânico responsável pelas questões relacionadas à investigação sobre o sangue contaminado.
O escândalo tem suas raízes nas décadas de 1970 e 1980, quando milhares de pacientes foram expostos a sangue contaminado. Alguns precisaram de transfusões após acidentes, cirurgias ou complicações durante o parto.
Muitos outros eram pacientes com hemofilia, uma doença genética que impede a coagulação adequada do sangue. Na época, muitos deles receberam um tratamento derivado do plasma sanguíneo chamado Fator VIII, que fornecia a proteína que faltava aos pacientes hemofílicos para que o sangue coagulasse.
O tratamento era realizado usando bancos de plasma de milhares de doadores, o que significava que até mesmo um pequeno número de doações contaminadas poderia contaminar todo o banco. (As proteínas sintéticas do fator de coagulação foram desenvolvidas posteriormente).
O Serviço Nacional de Saúde importou parte do Fator VIII dos Estados Unidos, onde muitas doações vieram de prisioneiros ou usuários de droga que haviam sido pagos para doar sangue, aumentando o risco de contaminação de HIV ou de hepatite C.
Durante anos, o governo britânico e as autoridades de saúde insistiram que as infecções não foram intencionais, que os pacientes receberam o melhor atendimento disponível e que a detecção da hepatite C não poderia ter sido realizada antes.
Contudo, Langstaff afirmou que as autoridades britânicas ignoraram os primeiros sinais de alerta ― alguns vindo da década de 1940― de que as transfusões de sangue poderiam transmitir doenças como a hepatite. Elas também não fizeram a detecção adequada de doadores de alto risco, não informaram os pacientes sobre os riscos e demoraram a adotar novos exames usados por outros países.
A Organização Mundial da Saúde já havia indicado, em 1952, como reduzir o risco de transmissão da hepatite por meio da transfusão de sangue e produtos sanguíneos, por exemplo, selecionando cuidadosamente os doadores e evitando grandes grupos de doadores. Porém, as autoridades britânicas seguiram pouco ou nada dessa orientação, acrescentou.
O relatório descobriu que as autoridades britânicas não conseguiram garantir um suprimento nacional suficiente de concentrados de Fator VIII do plasma de doadores do Reino Unido e, em 1973, autorizaram a importação de produtos sanguíneos dos Estados Unidos e da Áustria, embora esses tratamentos “fossem considerados menos seguros do que os tratamentos nacionais atuais para distúrbios hemorrágicos”.
Em alguns casos, as vítimas foram usadas em ensaios médicos sem seu consentimento. Em outros, os diagnósticos foram atrasados ou negados, levando os pacientes a contaminarem seus parceiros sem saber.
O grupo de investigação ―composto por profissionais da área jurídica, pesquisadores e funcionários públicos― escutou pessoas contaminadas e suas famílias e entes queridos, especialistas em medicina e ética, funcionários públicos e políticos.
Às vítimas e suas famílias, tinham considerado as pesquisas anteriores e as ofertas de indenização (https://www.nytimes.com/1990/12/13/world/british-hemophiliacs-win-compensation-for-aids.html?searchResultPosition=15) insuficientes. Em 2009,um relatório independente (http://www.nytimes.com/2009/02/23/world/europe/23iht-23blood.20379000.html) [3] concluiu que a tragédia poderia ter sido evitada se as importações de sangue dos EUA tivessem sido suspensas, mas não chegou a culpar médicos ou empresas individualmente, e nenhum funcionário do Departamento de Saúde foi chamado para prestar depoimento.
Em 2015 , uma (http://www.penroseinquiry.org.uk/) investigação na Escócia (http://www.penroseinquiry.org.uk/) [4] resultou em um pedido de desculpas de David Cameron, então primeiro-ministro, mas a investigação foi considerada insatisfatória pelas vítimas e suas famílias porque não foi capaz de convocar testemunhas fora da Escócia.
Outros países, como os Estados Unidos [5] e o Japão [6], enfrentaram escândalos parecidos.
Na França, vários altos funcionários da saúde pública foram condenados em 1992 [7] por distribuir sangue contaminado, e o então Ministro da Saúde foi condenado em 1999 por negligência. Mas ele não foi punido, e dois outros altos funcionários, entre eles Laurent Fabius, então primeiro-ministro, foram absolvidos [8].
Referências
Nota de Salud y Fármacos. De acordo com outras fontes [1], centenas de crianças foram infectadas com sangue contaminado, principalmente com hepatite C e HIV. Muitas dessas crianças aparentemente “participaram” dos ensaios porque tinham distúrbios de coagulação do sangue, embora suas famílias não tivessem consentido com sua participação, e a maioria delas já morreu.
Referências