A história mostra que ocultar dados de ensaios clínicos pode ser mortal.
A Vioxx é um exemplo bem conhecido de como a agência reguladora de medicamentos dos EUA ocultou informações importantes sobre os danos da droga por mais de três anos [1], antes de ser retirada do mercado e dezenas de milhares de pessoas morrerem por causa dela.
Numerosas iniciativas para melhorar o acesso aos dados de ensaios foram lançadas nas últimas duas décadas, depois que ficou claro que as publicações em revistas revisadas pelos pares eram, frequentemente, seletivas e enganosas.
Cientistas eminentes conseguiram que os reguladores de medicamentos europeus e canadenses permitissem o acesso aos dados dos ensaios, mas uma análise recente publicada no Journal of Law, Medicine, & Ethics [2] conclui que a FDA dos EUA continua estando atrás dos outros quando se trata de transparência de dados.
Europa na liderança
Os reguladores de medicamentos têm sido tradicionalmente os guardiões das grandes quantidades de dados de ensaios e mantendo-os ocultos do público. Mas, há mais de uma década, os esforços do professor dinamarquês Peter Gøtzsche reverteram essa situação.
Gøtzsche e seu aluno de doutorado estavam investigando os efeitos de um medicamento contra a obesidade e solicitaram dados de testes mantidos pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA).
“Já tínhamos fortes evidências de que as informações fornecidas pelas revistas médicas sobre a eficácia e os danos dessas drogas eram incompletas, por isso solicitamos os dados que as agências reguladoras tinham sobre as pílulas para obesidade porque estávamos convencidos de que elas nos aproximariam mais com a verdade”, explica Gøtzsche.
Inicialmente, a EMA rejeitou o pedido alegando que precisava proteger informações comerciais confidenciais, mas Gøtzsche não se intimidou. Ele apresentou uma reclamação formal ao Defensor de Justiça Europeu.
Após um árduo processo de três anos, o Defensor de Justiça acusou a EMA de “má administração” por negar-se a partilhar os dados. Como foi uma acusação séria e embaraçosa [3] a EMA não teve escolha a não ser capitular.
Em 2013, a EMA anunciou [4] que facilitaria o acesso público a dados regulatórios que incluiriam os relatórios de estudos, protocolos e dados anônimos de pacientes inseridos em programas estatísticos, permitindo que qualquer pessoa analisasse, independentemente, os dados de todos os novos medicamentos que ela aprovou.
Foi um momento agridoce para Gøtzsche.
“Fiquei satisfeito com o resultado, mas também me senti um pouco traído. Quando a EMA se vangloriou de ser transparente e convenientemente falhou em informar ao público que foi forçada a tomar a decisão graças aos meus esforços e aos do Ombudsman.” disse Gotzsche.
“Já estou nisso há algum tempo e sei que é exatamente assim que a indústria farmacêutica funciona. Eles encobrem seus fracassos e se gabam do que os outros os obrigam a fazer”, acrescentou.
Desde então, milhões de páginas de dados de testes foram publicadas. Curiosamente, esse feito passou despercebido e a resposta da comunidade de pesquisa foi bastante morna.
Gøtzsche suspeita que isso aconteça porque a análise de documentos normativos é complexa, se requer experiência para decifrá-los e poucos pesquisadores a possuem.
“Fazer revisões sistemáticas de relatórios de estudos clínicos mantidos por agências reguladoras de medicamentos é um trabalho enorme, mas é a diferença entre produzir revisões confiáveis ou apenas revisões inúteis”, afirma Gøtzsche.
Desde então, o grupo de Gøtzsche mostrou que isso é o que acontece nas revisões de testes com antidepressivos.
Quando compararam os dados das revistas médicas com os de documentos regulamentares foram encontradas discrepâncias importantes como subnotificação de danos, incluindo tentativas de suicídio e comportamento agressivo.
O regulador canadense em destaque
Os pesquisadores acreditavam que a mudança política histórica na Europa ajudaria a desvendar documentos regulatórios em outros lugares que historicamente os mantinham ocultos.
Em 2016, Peter Doshi, professor da Universidade de Maryland e editor-chefe do The BMJ fez uma petição ao regulador de medicamentos do Canadá, Health Canada, para liberar dados não publicados de ensaios clínicos de antivirais para o tratamento da gripe (Tamiflu, Relenza) e três vacinas contra o vírus do papiloma humano.
Depois de alguma resistência, a Health Canada concordou em permitir o acesso de Doshi aos documentos, mas fez um acordo de confidencialidade que o impediria de tornar suas descobertas públicas.
Quando Doshi se recusou a assinar o acordo de confidencialidade, seu pedido de acesso aos dados do estudo foi negado, então ele entrou com uma ação no tribunal federal solicitando a revisão judicial da decisão do regulador.
Surpreendentemente, em 2018, no caso de Peter Doshi v. Procurador-Geral do Canadá [5], um juiz do tribunal federal decidiu a favor de Doshi [6] e do interesse público, ordenando que a Health Canada entregasse os dados do julgamento para que se realizem escrutínios independentes.
Após o veredicto, Doshi disse ao The BMJ: “Para mim, este caso sempre foi sobre algo mais amplo do que minha aplicação específica. Trata-se do princípio da transparência. Se meu caso estabelecer um precedente e a Health Canada começar a disponibilizar dados de ensaios clínicos para outros – prontamente e sem impor acordos de confidencialidade – essa será a verdadeira vitória.”
Vale destacar que o regulador de medicamentos do Canadá deu um passo além da EMA divulgando proativamente os dados não apenas sobre envios de medicamentos aprovados, mas também sobre “submissões de medicamentos e produtos biológicos não aprovados e retirados… e as solicitudes de comercialização de dispositivos médicos de classe III e IV” [7].
E a FDA dos EUA?
A FDA dos EUA hospeda o maior repositório conhecido de dados de ensaios clínicos no mundo, mas não o compartilha proativamente.
Em 2018, a FDA lançou um novo programa piloto para publicar proativamente os relatórios de estudos clínicos para ensaios essenciais de nove medicamentos recém-aprovados, mas a agência encerrou esse programa em março de 2020 [8].
“Isso é muito típico da FDA, que tem uma grande dívida com a indústria; alguns a apelidaram de Agência que arrasta os pés quando se trata do interesse público”, disse Gøtzsche.
Atualmente, o único mecanismo para conhecer os dados regulatórios para medicamentos aprovados pela FDA é enviando solicitações usando a Lei de Liberdade de Informação (FOIA), um processo demorado que geralmente resulta no envio de documentos com muitas rasuras (redigidos) de baixo valor.
Um estudo realizado por pesquisadores dos EUA analisou a disposição da FDA para divulgar dados [9], em comparação com outros órgãos reguladores como a EMA e a Health Canada.
Foi descoberto que, entre 2016 e abril de 2021, a EMA publicou dados de 123 produtos médicos exclusivos enquanto a Health Canada publicou dados de 73 produtos médicos exclusivos, entre 2019 e abril de 2021.
Em contraste, a FDA apenas divulgou proativamente dados que apoiam um único medicamento aprovado em 2018, demonstrando claramente que a agência não conseguiu acompanhar os reguladores europeus e canadenses.
O problema do sigilo de dados dentro da FDA ficou especialmente aparente durante a pandemia. Recentemente, relatei no The BMJ que a agência não havia divulgado os “sinais de segurança” da vacina contra a covid-19 que foram detectados durante o período pós-comercialização [10].
Além disso, o grupo sem fins lucrativos Professionais Médicos e de Saúde Pública pela Transparência (Public Health and Medical Professionals for Transparency) teve que processar a FDA [11] para acessar os documentos do ensaio que usou para licenciar a vacina da covid-19 Pfizer RNAm. A agência, originalmente, queria 75 anos para publicar todos os dados, mas um juiz federal negou o pedido [12] e ordenou que os documentos fossem publicados a um ritmo de 55.000 páginas por mês, o que levou, aproximadamente, 8 meses.
Devido ao uso generalizado dessa importante intervenção de saúde pública e os bilhões de dólares em fundos públicos destinados à pesquisa e desenvolvimento de vacinas [13], esses dados deveriam tornar-se públicos imediatamente.
O sigilo de dados prejudicou o sistema de saúde ao subverter a alocação de recursos destinados a assustar e minar a confiança pública. O dano causado à confiança das pessoas nas vacinas e nos medicamentos em geral será sentido por gerações e, provavelmente, prejudicará a saúde pública.
Referencias