Cerca de 60% de médicos norte-americanos que atuaram como membros do painel e da força-tarefa do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, Quinta Edição, Revisão de Texto (DSM-5-TR) receberam mais de US$ 14 milhões em financiamento da indústria não revelado publicamente, de acordo com um novo estudo.
A maioria das despesas foi com alimentos e bebidas, viagens e despesas com consultoria. No entanto, mais de um terço dos contribuintes foram remunerados por serviços que não eram de consultoria, como participação como palestrantes numa empresa farmacêutica, o que, segundo especialistas em ética médica, é especialmente problemático.
Conhecido como a bíblia dos transtornos psiquiátricos, o DSM-5-TR foi lançado em 2022 [1] pela American Psychiatric Association (APA) e inclui alterações feitas on-line desde que o DSM-5 foi originalmente publicado em 2013.
Um representante da APA disse ao Medscape Medical News que executivos do DSM-5-TR não poderiam participar caso tivessem recebido mais de US$ 5.000 em financiamento pela indústria e que todos os 186 indivíduos que trabalharam na revisão do texto tiveram que divulgar completamente suas fontes de renda antes de participar.
“A APA implementou e impôs um processo rigoroso envolvendo o DSM-5-TR que exigiu a transparência em relação a interesses pessoais e profissionais por parte de cada colaborador, seguido de uma revisão independente para garantir que interesses pessoais e profissionais não influenciassem no resultado”, disse o representante.
Não obstante, o fato de terem recebido financiamento da indústria não impediu a participação de colaboradores, e pesquisadores observam que nenhuma das tais divulgações foi publicada no manual ou compartilhada publicamente.
“O objetivo não é de culpar a APA ou membros individuais da APA, e sim fornecer uma pequena parte dos dados da pesquisa que ajudaria a APA a analisar o sistêmico problema de conflitos de interesse”, disse à Medscape Medical News a pesquisadora principal do estudo, Lisa Cosgrove, PhD, professora de consultoria e membro do corpo docente do Centro de Ética Aplicada da Universidade de Massachusetts Boston.
Os achados foram publicados on-line no dia 10 de janeiro no The BJM [2].
Um Inquérito Profundo
O projeto se baseia na pesquisa anterior (https://www.medscape.com/viewarticle/760542) feita sobre conflitos financeiros entre colaboradores do DSM [3]. A falta de um banco de dados de pagamentos da indústria centralizado tornou a realização dos estudos anteriores do grupo muito mais complicados e prolongados.
Para realizar esse projeto, os pesquisadores se basearam no banco de dados Open Payments, lançado em 2014. Ele coleta e publica dados sobre pagamentos feitos por empresas farmacêuticas e de dispositivos médicos a médicos e outros profissionais de saúde para pesquisa, refeições, viagens, presentes, despesas com palestras, entre outras. O programa foi estabelecido como parte do Affordable Care Act e é administrado pelos Centers for Medicare & Medicaid Services.
Os pesquisadores analisaram pagamentos da indústria feitos aos colaboradores do DSM-5-TR entre 2016 e 2019, pouco antes do início do processo de revisão do texto. Dos 168 indivíduos listados como colaboradores do manual, 92 aderiram ao critério de participação como profissional médico baseado nos EUA com pagamentos da indústria rastreados pelo Open Payments.
Cinquenta e cinco desses médicos, ou 59,8%, tinham vínculos financeiros com a indústria. A espécie mais comum de pagamento foi destinada a alimentos e bebidas (90,9%), viagens (69,1%) e consultoria (69,1%). Dezenove membros do painel receberam US$ 1,8 milhão por “remuneração por serviços que não sejam de consultoria, incluindo atuar como professor ou palestrante num local que não seja uma instituição de educação”.
A maior porção da remuneração por categoria de pagamento foi destinada ao financiamento de pesquisa (71%).
Os pesquisadores descobriram que cada painel do DSM-5-TR incluía pelo menos um membro com vínculos à indústria. Os painéis com o maior número de membros possuindo histórico de financiamento recente da indústria foram os de transtornos do neurodesenvolvimento; transtornos bipolares; transtornos obsessivo-compulsivos; transtornos neurocognitivos; transtornos de movimento induzidos por medicação; e transtornos disruptivos, de controle de impulsos e de conduta. Acima de 70% dos membros desses painéis receberam financiamento da indústria.
O total recebido por todos os contribuintes foi de mais de US$ 14,2 milhões, com uma variação de pouco menos de US$ 14 por médico a US$ 2,7 milhões por médico. Os pesquisadores observam que a porcentagem de membros do painel que receberam apoio da indústria foi parecida comparando o DSM-5-TR ao DSM-5.
“Outra coisa que percebemos que é consistente com os nossos estudos de 2016 e de 2012 é que os painéis para os quais os membros possuem maiores vínculos financeiros com a indústria eram aqueles para os quais as intervenções farmacêuticas representam a primeira linha de terapia”, disse Cosgrove.
A Falta de Divulgação Pública
Para o DSM-5, a APA instituiu uma nova política de divulgação para os colaboradores e informou dessas divulgações em seu site.
Desta vez, o representante da associação disse que os presidentes do DSM-5-TR e o Comitê Diretor do DSM, que analisou todas as propostas de mudanças não poderiam receber da indústria acima do valor de US$ 5.000 e que “na verdade, muitos não tinham recebido da indústria”.
Outros contribuintes ao DSM-5-TR tiveram que enviar formulários de divulgação “extensos” e relatar “quaisquer relacionamentos que eles ou parentes próximos tivessem com a indústria (definido de forma muito ampla) e fontes de renda”, acrescentou o representante. Eles também foram solicitados a relatar outros interesses não financeiros que eles ou parentes próximos tivessem que pudessem influenciar o trabalho.
O Comitê Permanente de Conflito de Interesses da APA analisou todos os formulários de divulgação, identificando aqueles que continham divulgações que poderiam afetar o resultado. O texto escrito por indivíduos com divulgações identificadas recebeu revisão reforçada, disse o representante.
“Caso qualquer possível viés fosse observado no conteúdo do texto, por exemplo, uma possível vantagem comercial com um meio de diagnóstico, tal conteúdo foi excluído”, disse o representante.
Entretanto, o verdadeiro ponto de atrito para os especialistas em ética médica é que, diferentemente do DSM-5, a APA não compartilhou publicamente as divulgações dos colaboradores ao DSM-5-TR.
Pronunciando-se sobre a pesquisa para o Medscape Medical News, Bernard Lo, MD, professor emérito de medicina e diretor emérito do Programa de Ética Médica Emérita da Universidade da Califórnia, em São Francisco, disse que a falta de divulgação pública é grave.
“Parte do relatório deveria consistir de, “Aqui estão os conflitos de interesse relatados pelos membros do painel'”, disse Lo, acrescentando que a publicação de divulgações é padrão de todos os periódicos revisados por pares da APA. “Deixar de fazer isso no DSM-5-TR é inaceitável do ponto de vista ético e de transparência.”
O Público Está Perdendo Confiança?
Tanto em sua pesquisa anterior e nesse novo estudo, Cosgrove recomenda que a APA siga o relatório de 2011, Normas de Práticas Clínicas em que Podemos Confiar ( em Inglês, Clinical Practice Guidelines We Can Trust). Publicado pelo Instituto de Medicina (IOM, agora chamado de Academia Nacional de Medicina), esse relatório serviu para atualizar e simplificar uma diretriz de conflitos de interesse datada de 2009 [4], da qual Lo é coautor.
“A IOM recomenda que todo o grupo de elaboração de diretrizes esteja livre de vínculos com a indústria”, disse Cosgrove. “No mínimo, o presidente assim como a maioria das pessoas não deve ter vínculos com a indústria.
Há quem defenda que banir todos os colaboradores com vínculos à indústria reduziria o grupo de especialistas que desenvolve o DSM e outras diretrizes. Cosgrove não concorda com essa tese.
“Há centenas de especialistas em todas as disciplinas médicas que não possuem vínculos com a indústria”, disse Cosgrove. “O argumento de que ‘a maioria dos especialistas possui vínculos com a indústria’ é enganoso e sem fundamento.”
A APA também deveria proibir colaboradores que recebem financiamento do setor como líderes de opinião importantes, conhecidos como KOLs, como membros das agências de palestrantes de empresas farmacêuticas, disse Lo.
“Certos tipos de relações de financiamento com a indústria possuem maior quantidade de problemas éticos”, incluindo os KOLs, que Lo disse serem “basicamente vendedores tentando aumentar as vendas de um produto”.
“Isso realmente compromete sua objetividade científica e deveria excluir qualquer um de qualquer órgão elaborador de diretrizes de normas”, disse Lo. “Essa falha em abordar adequadamente os conflitos de interesse não promove a transparência e não promove a confiança do público em critérios de diagnóstico.”
O Problema Maior
Remover conflitos de interesse financeiro é um início, mas não resolveria o problema maior da medicina, disse Allen Frances, MD, que presidiu a força-tarefa do DSM-4 e tem sido um crítico declarado do DSM-5 [5].
“Os conflitos de interesse financeiro podem ter um papel importante para algumas pessoas, não estou negando isso”, disse Frances, professor e presidente emérito de psiquiatria da Duke University, em Durham, Carolina do Norte. “Mas esse é um problema muito menor do que o fato de que qualquer indivíduo de qualquer associação profissional que tenha grande interesse num determinado diagnóstico estará sempre aliado à expansão desse diagnóstico e da expansão do seu tratamento.”
Mesmo que conflitos de interesse financeiros possam ser resolvidos, Frances acredita que os “conflitos intelectuais e emocionais” dos profissionais são muito mais difíceis de superar.
“As pessoas que passam suas carreiras trabalhando em qualquer diagnóstico são muito tendenciosas devido ao seu apego ao trabalho”, disse ele.
A solução para isso é que as diretrizes em psiquiatria e em todos os campos médicos sejam desenvolvidas por um “conselho neutro” realmente multidisciplinar que inclua uma grande representação por médicos da atenção primária.
O Desenvolvimento das diretrize contaria com especialistas, mas esses não gozariam do poder de decisão final sobre quais diagnósticos ou tratamentos seriam incluídos ou excluídos.
“80% dos medicamentos psiquiátricos são prescritos por médicos de atenção primária, e não por psiquiatras”, disse ele. “Portanto, quando você sugere alguma mudança na psiquiatria, está fazendo essa sugestão principalmente ao médico de atenção primária e precisa pensar em como essa mudança funcionará na atenção primária, o que os especialistas nunca fazem.”
Referências
Nota de Salud y Fármacos. Ed Silverman [1] e Lisa Cosgrove, principal autora do estudo [2] publicaram comentários sobre esse estudo, a continuação ,seus artigos acrescentam ao artigo do Medscape.
Referências