Segundo um artigo que Peter Doshi publicou no British Medical Journal [1], dois funcionários da FDA que supervisionavam as vacinas da covid-19 foram trabalhar para a Moderna. A continuação, resumimos os pontos mais importantes sobre a porta giratória entre a Moderna e a FDA, e como o governo contribuiu para o crescimento desta empresa.
Doran Fink começou a trabalhar na FDA em 2010 e acabou em um cargo alto no Escritório de Pesquisa e Revisão de Vacinas, onde supervisionava uma pequena equipe de médicos responsáveis por doenças infecciosas e produtos biológicos para combatê-las.
Durante a pandemia de covid-19, o Fink apareceu em numerosas reuniões do comitê de assessoria da FDA e dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) para falar sobre as vacinas contra a covid-19. Em meados de 2020, Fink anunciou os critérios da FDA para autorizar as vacinas contra a covid-19 e participou da decisão final de aprovar as vacinas da Pfizer e da Moderna. Em dezembro de 2022, ele deixou seu posto na FDA e, dois meses depois, começou a trabalhar na Moderna, como diretor do programa de medicina translacional e desenvolvimento clínico inicial para combater doenças infecciosas.
Jaya Goswami começou a trabalhar no Centro de Avaliação e Pesquisa de Produtos Biológicos da FDA em março de 2020 e foi responsável por avaliar se os dados clínicos da vacina contra a covid-19 da Moderna atendiam aos critérios regulatórios para serem aprovados. A vacina foi aprovada no final de janeiro de 2022. Goswami deixou a FDA em junho de 2022 e, no mesmo mês, começou a trabalhar como diretor de desenvolvimento clínico para combater doenças infecciosas na Moderna.
Na Moderna, Goswami esteve envolvido nos esforços para comercializar uma vacina de mRNA contra o vírus sincicial respiratório (mRNA-1345). Em julho de 2023, a empresa anunciou que havia apresentado solicitações de aprovação regulatória nos EUA, na União Europeia, na Austrália e na Suíça. Nos EUA, espera-se que a revisão ocorra no Escritório de Pesquisa e Revisão de Vacinas da FDA, o grupo no qual trabalharam Fink e Goswami.
O problema das portas giratórias é conhecido há décadas [2]. De acordo com um representante da agência, “a FDA leva a sério sua obrigação de ajudar a garantir que as decisões e ações tomadas por ela e por seus funcionários não sejam e não pareçam ser contaminadas por qualquer conflito de interesses”. Porém, a FDA não registra os cargos que seus funcionários aceitam quando deixam o emprego no governo, nem conta com um processo para intervir caso eles saiam para trabalhar com qualquer uma das indústrias regulamentadas pela agência.
Os funcionários públicos que deixam o emprego no governo devem cumprir as normas trabalhistas. As restrições incluem uma proibição permanente de “mudar de lado”, definida como “uma proibição vitalícia de se comunicar ou comparecer perante o governo em nome de seu novo empregador ou de qualquer outra pessoa, para tratar de assuntos específicos relacionados à sua posição como funcionário”. E aqueles que começaram a procurar ou a negociar um emprego na indústria”devem se abster imediatamente de participar de qualquer assunto oficial que envolva o possível empregador”.
O BMJ perguntou a Goswami, Fink, à Moderna e à FDA se algum dos ex-reguladores pediu conselhos ao Escritório de Ética e Integridade da FDA antes de ir para a Moderna, e se enquanto estavam na FDA se eles se recusaram a participar de quaisquer assuntos relacionados à procura de emprego. A FDA respondeu dizendo que o BMJ deverá apresentra uma solicitação segundo a Lei de Liberdade de Informação, e o vice-presidente de comunicações e mídia da Moderna, Chris Ridley, respondeu: “Não temos nenhum comentário sobre sua pergunta”. Goswami e Fink não responderam.
Craig Holman, da Public Citizen, diz: “A porta giratória é particularmente abusiva em agências que recebem uma grande quantidade de dinheiro. Esse é um grande problema no caso da FDA, especialmente com a pandemia e a Operação Warp Speed”, referindo-se ao programa que foi estabelecido para acelerar a comercialização de uma vacina contra o coronavírus.
Segundo Holman, a FDA poderia proibir seus funcionários de trabalharem para empresas que ela regulamentou, e aqueles que ingressarem na FDA “poderiam ser obrigados a assinar um compromisso ético dizendo que não tomarão nenhuma medida oficial que afete seus antigos empregadores ou clientes”. Ele sugere um período de ” reflexão” de pelo menos dois anos: “É necessário um período de tempo para que os relacionamentos e as redes de contato se desfaçam”. Durante a presidência de Obama, por exemplo, os indivíduos designados para agências executivas foram proibidos de fazer lobby durante o governo Obama após deixarem seus cargos.
Uma investigação de Holman [3] constatou que a maioria dos estados dos EUA tem leis de esfriamento que impedem ex-funcionários do governo de fazer lobby em suas agências por dois anos, e a Flórida recentemente estendeu seu período de reflexão para seis anos.
As portas giratórias
Os perigos da porta giratória entre a FDA e a indústria ficaram vividamente refletidos no caso de Curtis Wright e da Purdue Pharma, uma história que agora é contada em livros e na televisão. Wright liderou a aprovação do OxyContin pela FDA em 1995. O rótulo do OxyContin, que Wright ajudou a escrever, dizia que o opióide tinha menor potencial de uso indevido, um argumento central na campanha da Purdue para comercializar o medicamento para populações cada vez mais amplas. Cerca de um ano depois de deixar a FDA, Wright aceitou um cargo de US$ 379.000 por ano na Purdue.
Em um estudo de 2016 publicado no The BMJ, os pesquisadores acompanharam as carreiras de 55 funcionários da divisão de hematologia e oncologia da FDA envolvidos em aprovações de medicamentos durante vários anos. Dos 26 que deixaram a FDA, 15 posteriormente trabalharam ou prestaram consultoria à indústria [4]. Em 2018, uma investigação da revista Science relatou que “11 dos 16 médicos da FDA que trabalharam em 28 aprovações de medicamentos e depois deixaram a agência são agora funcionários ou consultores das empresas que pouco antes regulamentavam. Isso pode criar, pelo menos, a aparência de conflitos de interesse” [5].
A Moderna fortalece seu relacionamento com o governo
Antes da pandemia, a Moderna tinha experiência regulatória limitada. A empresa, fundada em 2010, havia apresentado solicitações para a comercialização de produtos da plataforma de mRNA, mas em sua década de história ainda não havia colocado nenhum produto no mercado.
A sorte da Moderna mudou graças à covid. Moncef Slaoui, farmacêutico e membro ativo da junta de diretores da Moderna, foi nomeado pelo presidente Trump para co-liderar a Operação Warp Speed. Ao receber a nomeação, Slaoui vendeu todas as suas ações da Moderna (US$ 12 milhões) e se demitiu do conselho, mas manteve uma participação estimada em US$ 10 milhões na GlaxoSmithKline, outro receptor de financiamento da Operação Warp Speed. Slaoui aceitou o cargo como contratado, o que significa que não estava sujeito aos requisitos éticos de divulgação e venda de ações para funcionários do governo federal.
Em nome da Public Citizen, Holman apresentou uma queixa de ética contra Slaoui, exigindo que ele fosse classificado como um “funcionário governamental especial” sujeito ao código federal de conflito de interesses e aos requisitos de divulgação..
Sob a direção de Slaoui, a Moderna emergeu rapidamente como líder. Em março de 2020, começou um ensaio clínico de fase 1, 66 dias após a publicação da sequência viral do coronavírus e, em meados do verão, os EUA prometeram US$ 955 milhões para um ensaio de fase 3 e, em seguida, ofereceram US$ 1,5 bilhão como parte de um compromisso de compra antecipada de 100 milhões de doses. (Em março de 2021, um relatório do Congresso estimou que a Moderna havia recebido US$ 4,94 bilhões em financiamento federal, para um total de 300 milhões de doses [6]).
Em 18 de dezembro de 2020, sob a liderança de Stephen Hahn, a FDA concedeu a primeira aprovação de comercialização global para a vacina contra a covid-19 da Moderna, a mRNA-1273. Seis meses depois, após deixar o cargo com a transição para o governo Biden, Hahn se uniu ao Flagship Pioneering, “o fundo de risco que deu origem à Moderna”.
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Referências