Em julho de 2023, o comitê de farmacovigilância (PRAC) da Agência Europeia de Medicamentos decidiu iniciar uma revisão dos agonistas do GLP-1, após relatos na União Europeia de pensamentos suicidas e de autoflagelação, atribuídos a dois agonistas do GLP-1 autorizados para perda de peso e diabetes tipo 2: liraglutide e semaglutide nas formas injetável e de via oral [1,2].
No final de 2023, os sumários europeus das características do produto (SmPCs) para produtos que contêm um agonista do GLP-1 não fazem menção a esse tipo de efeito adverso [2]. Porém, as informações de prescrição dos EUA para produtos contendo liraglutide ou semaglutide destinados ao uso em pacientes obesos são mais informativas. Particularmente, as informações de prescrição da liraglutida mencionam, desde 2014, que os pensamentos suicidas e as tentativas de suicídio foram relatados nos grupos de liraglutida durante os ensaios clínicos, e que uma criança cometeu suicídio [3]. As informações de prescrição desses medicamentos recomendam o monitoramento dos pacientes expostos quanto a depressão ou pensamentos suicidas, e a descontinuação do medicamento se os sintomas se desenvolverem [3].
Até que ponto os agonistas do GLP-1 expõem os pacientes a um risco de depressão, de ideação suicida, de tentativa de suicídio ou de suicídio? Este artigo resume as principais conclusões de nossa pesquisa bibliográfica para obter respostas a essa pergunta, até o final de 2023.
Um risco que provavelmente é subestimado em ensaios clínicos. Durante os ensaios comparativos realizados antes da introdução no mercado do liraglutide em adultos obesos, a ideação suicida foi relatada com mais frequência em pacientes nos grupos de liraglutide do que naqueles nos grupos de placebo: 9 pacientes de 3.384 (0,3%) em comparação com 2 pacientes de 1.941 (0,1%), respectivamente, com uma tentativa de suicídio em comparação com nenhuma [3,4].
O ensaio realizado em adolescentes obesos, realizado entre 2016 e 2019, excluiu aqueles com risco de depressão ou suicídio, mas, mesmo assim, a depressão se mostrou mais frequente no grupo da liraglutide : 4% em comparação com 2,4% no grupo placebo [4,5]. Um adolescente cometeu suicídio cerca de 48 semanas após o início do tratamento com liraglutide [4].
Nossa pesquisa da literatura identificou ensaios randomizados de fase 3 ou 4 cujos resultados foram publicados e que avaliaram os agonistas do GLP-1 para as indicações “excesso de peso corporal” ou “diabetes”. A partir de 2008, alguns ensaios de fase 3 do liraglutide para perda de peso, independente do excesso de peso estar ou não associado a transtornos metabólicos, indicaram entre seus critérios de exclusão um histórico de depressão maior ou tentativa de suicídio [6].
Com o semaglutide, durante os ensaios de fase 2 ou fase 3 que apoiaram a autorização de comercialização para perda de peso, os pacientes eram excluídos se tivessem histórico de transtornos psiquiátricos graves, em específico aqueles com histórico de depressão maior nos últimos 2 anos e aqueles com histórico de tentativa de suicídio ou qualquer comportamento suicida nos últimos 30 dias [7].
Em resumo, a maioria dos ensaios que avaliaram os agonistas do GLP-1 para perda de peso excluíram pacientes com risco de depressão, portanto, esses ensaios clínicos subestimaram a incidência de depressão e pensamentos suicidas. Durante 2014, a agência reguladora de medicamentos dos EUA (FDA) requereu que as empresas monitorassem transtornos de humor e tendências suicidas durante os ensaios de todos os medicamentos de ação central voltados a perda de peso [8].
Várias centenas de casos de ideação suicida, de tentativas de suicídio ou de suicídio relatados na Europa e nos EUA. Em julho de 2023, o PRAC informou que o banco de dados de farmacovigilância europeu (EudraVigilance) continha 108 casos de ideação suicida ou pensamentos de autoflagelação atribuídos à liraglutida e 62 casos atribuídos à semaglutida [1]. Mais especificamente, em meados de outubro de 2023, a seção de acesso público desse banco de dados mencionava 29 casos de tentativa de suicídio e 123 casos de ideação suicida com liraglutide, 10 tentativas de suicídio e 127 casos de ideação suicida com semaglutide, 10 tentativas de suicídio e 36 casos de ideação suicida com exenatide e 16 tentativas de suicídio e 26 casos de ideação suicida com dulaglutide [9]. Além disso, o banco de dados registrou alguns casos de autoflagelação com liraglutide e semaglutide [9].
No Reino Unido, entre 2019 e outubro de 2023, o banco de dados de acesso público de farmacovigilância Britânico registrou 24 casos de comportamento suicida e autoflagelação associados à semaglutida, 20 à liraglutida, 4 à dulaglutida e 2 à exenatida [10].
Entre 2010 e o início de outubro de 2023, o banco de dados de farmacovigilância dos EUA (FAERS) registrou 265 casos de ideação ou comportamento suicida, incluindo 36 suicídios, em pacientes que tomavam um agonista do GLP-1 [11].
Sinais de segurança para tentativa de suicídio, depressão e outros transtornos de saúde mental com liraglutide, de acordo com dados de farmacovigilância da Coreia do Sul. Uma equipe realizou uma análise do banco de dados de farmacovigilância da Coreia do Sul durante o período de 2017 a 2020, na qual as taxas de efeitos adversos associados ao liraglutide foram comparadas com as taxas associadas a outros agonistas de GLP-1 e gliptinas. Os efeitos adversos estudados foram aqueles não mencionados nos SMPCs (Resumo das Características do Produto). Os efeitos adversos em que a proporção pareceu maior foram, em particular, os transtornos de saúde mental: tentativa de suicídio, depressão, comportamento agressivo, instabilidade emocional, apatia e desrealização (um transtorno de percepção em que o ambiente ao redor é visto como irreal ou bizarro) [12].
A sensação de saciedade está ligada a uma ação central nos receptores GLP-1 hipotalâmicos. Os agonistas do receptor de GLP-1 são análogos do GLP-1, um hormônio derivado do intestino da família das incretinas [13]. O GLP-1 e seus agonistas se ligam a um receptor específico de GLP-1 expresso em vários tecidos e órgãos, em particular nas células beta pancreáticas (responsáveis pela estímulo pós-prandial da secreção de insulina pelos agonistas de GLP-1), nos ductos pancreáticos, na mucosa gástrica, nos rins, nos pulmões, no coração, na pele, nas células imunológicas e no hipotálamo [14]. Além de seu efeito sobre a secreção de insulina, o GLP-1 retarda o esvaziamento gástrico e induz uma sensação de saciedade por meio dos receptores de GLP-1 no hipotálamo [13-15].
Riscos à saúde mental reconhecidos com outros inibidores de apetite. Outros medicamentos usados atualmente ou no passado como inibidores de apetite também têm uma ação central. Esses são, em específico, anfetaminas e drogas semelhantes a anfetaminas, como fentermina (várias marcas, a maioria delas retiradas do mercado), que aumenta a sensação de saciedade e reduz a mobilidade intestinal, e traz um risco de depressão e de ideação suicida; benfluorex (Mediator°, agora retirado); a combinação de bupropiona + naltrexona (Mysimba°); e sibutramina (Sibutral°, agora retirado de mercado), que traz um risco de depressão e de ideação suicida, entre outros [16-19].
O Rimonabanto (Acomplia°, agora retirado de mercado), um antagonista do receptor canabinóide CB1, foi retirado do mercado pelo fato de apresentar efeitos adversos neuropsiquiátricos e de ideação suicida, que eram frequentes e às vezes fatais [20].
A lorcaserina, um agonista serotoninérgico dos receptores 5HT2C, cuja ativação aparenta estar ligada ao efeito supressor do apetite das anfetaminas, também apresenta risco de depressão e pensamentos suicidas [21].
Na Prática No final de 2023, com base nos dados disponíveis, não é possível descartar uma ligação entre o uso de agonistas do GLP-1 e do desenvolvimento de depressão, de ideação suicida, de tentativas de suicídio ou de suicídio.
Como precaução, deve-se considerar que esse risco se aplica a todos os agonistas do GLP-1, visto que eles têm a mesma ação central, e independente da situação clínica para a qual o medicamento foi prescrito.
Porém, é provável que os pacientes obesos sejam mais afetados que os pacientes diabéticos, já que a própria obesidade pode causar distúrbios psicológicos, inclusive a depressão e a ansiedade, resultantes do estigma associado à obesidade e à pressão (inclusive dos médicos) para perder peso [22-25].
Revisão da literatura até 13 de outubro de 2023