Em um artigo publicado no BMJ, Sismondo e Bernisson [1] descrevem como a Mallinckrodt contribuiu para a crise dos opióides nos EUA e contrastam a atitude da Mallinckrodt com a da Purdue Pharma. Esse estudo é importante porque, com base em 1,3 milhão de documentos que a empresa teve de entregar aos tribunais – entre eles 900 contratos –, os autores explicam como as empresas influenciam o que é prescrito pelos profissionais de saúde e como distorcem a ciência. A seguir, os pontos mais importantes.
Entre 2006 e 2012, a Mallinckrodt vendeu quase 40% de todos os comprimidos de opióides (oxicodona de 30 mg, de cor azul celeste) no mercado estadunidense. Durante esse período, seu faturamento com vendas de opióides chegou a $18,000, bem acima da Purdue Pharma. Hoje em dia, são vendidos comprimidos falsificados da mesma cor sob a marca M30, que contém fentanil.
A Mallinckrodt teve que enfrentar um processo e foi multada em $1,7 bilhão por propaganda enganoso e outras táticas inadequadas para aumentar as vendas. A empresa declarou falência duas vezes, o que lhe permitiu evitar grande parte da multa. Entretanto, também foi obrigada a divulgar 1,3 milhão de documentos internos, a maioria de 2009 a 2017, que descrevem como a empresa conseguiu estabelecer uma rede de centenas de médicos dos quais podia confiar para prescrever opioides.
As técnicas que a Mallinckrodt utilizou para promover seus analgésicos incluem contratos para influenciar a forma de como exercer a medicina da dor, cursos de educação continuada, uso de líderes de opinião, desenho e publicação de artigos em revistas científicas e propaganda enganosa.
Os contratos são especialmente reveladores. Neles, é possível observar o esforço cuidadosamente coordenado para moldar as atitudes médicas em relação à medicina da dor: especificamente, para apresentar os opioides de liberação prolongada, como o Exalgo e o Xartemis, como inovações confiáveis, ao mesmo tempo em que apresenta os opioides em geral como o tratamento adequado tanto para a dor aguda quanto para dor crônica.
Em 2009, a FDA começou a exigir que os produtores de opióides desenvolvessem e implementassem estratégias de avaliação e mitigação de riscos por meio de programas educacionais para prestadores de assistência médica, farmacêuticos, enfermeiras e, às vezes, pacientes e outros. Naquele tempo, a crise de vício nos EUA estava em seu ápice. A Purdue tinha acabado de resolver as acusações de propganda “enganosa” com um pagamento de $600 milhões em 2007, e algumas revistas e jornais nacionais estavam usando manchetes como “Vício por prescrição” para explicar como algumas clínicas e farmácias de dor tinham se tornado “fábricas de comprimidos”. Os médicos estavam preocupados que o Exalgo fosse “demasiadamente potente” e que “os pacientes estavam passando por abstinência e interpretando isso como um evento adverso”.
A análise dos contratos mostra as táticas usadas pela Mallinckrodt para lidar com as dúvidas crescentes dos prescritores. Entre outras coisas, ele tentou reformular as preocupações com o vício como fobias e o conceito de dependência como pseudovício. Até chegou ao ponto de apresentar os opióides como um tratamento preventivo para a dor crônica.
Fobia de opióides
Em resposta à requisição da FDA de que os fabricantes de opióides educassem os médicos sobre seus riscos e benefícios, a Mallinckrodt lançou um programa de educação continuada chamado Remedies: Focus on Opioid Tolerance (Solução: focar na tolerância aos opióides). Inicialmente, o programa era para atingir 10,000 médicos a um custo de $2,5 milhões, mas depois foi ampliado e, em 2017, já havia atingido 88,316 prescritores.
Um especialista da Mallinckrodt resumiu as vantagens do programa como “educação sobre doses mais altas de opióides de ação prolongada”, “[melhora] a reputação da Mallinckrodt usando líderes de opinião, grupos de defesa de pacientes e associações de médicos especialistas” e “[destaca] a credibilidade da Mallinckrodt junto à FDA como uma empresa que se preocupa pela… prescrição segura de opióides”. Um dos líderes de opinião pagos pela empresa mencionou a “fobia de opioides” como uma das principais barreiras para o controle ótimo da dor.
A Mallinckrodt tinha ressuscitado a ideia da “medo irracional e não documentado entre os médicos de que o uso apropriado levaria os pacientes a se tornarem viciados”, que um artigo de jornal de 1985 tinha definido como “opiofobia”. O termo era quase sempre usado para minimizar ou ignorar as preocupações dos médicos e dos pacientes com relação à dependência.
Charles Argoff foi copresidente do programa Remedies da Mallinckrodt, participou dos conselhos editoriais do Pain Medicine News, do International Journal of Pain e do Clinical Journal of Pain e, entre 2013 e 2022, recebeu aproximadamente $200,000 por ano dos fabricantes de opióides.
Pseudovício
Muitas das principais mensagens da Mallinckrodt estão contidas no livro de 2010 de Argoff, Defeat Chronic Pain Now!, que a empresa promoveu ativamente. Entre outras coisas, o livro discutia o pseudovício: a ideia de que a necessidade de ir aumentando as doses (que tradicionalmente tem sido interpretada como o desenvolvimento de tolerância ou dependência a uma substância) era diferente de um vício. “Só raramente os opióides causam vício verdadeiro quando prescritos adequadamente a um paciente com dor crônica sem histórico de vício”, escreveram Argoff e seu coautor.
Os programas educacionais financiados pela Mallinckrodt delimitavam cuidadosamente e minimizavam a importância do vício: eles sugeriam que a tolerância, a dependência física e o pseudovício eram facilmente confundidos com um vício. O mau uso, o abuso e a overdose eram conceitualmente distintos. Isso permitiu que a empresa se concentrasse em suas contribuições positivas: suas formulações de ação e liberação prolongada, incluindo sua nova oxicodona, foram apresentadas como “formulações que impedem o abuso” que poderiam “atender às necessidades não atendidas no tratamento de dor aguda”.
Segundo Adriane Fugh-Berman, professora de farmacologia e fisiologia da Universidade de Georgetown, em Washington, DC, “ter criado o termo ’pseudovício‘ e ter distorcido os termos ’tolerância‘ e ‘dependência‘ foram estratégias que desviaram a atenção dos médicos e evitaram que se desem conta de que seus pacientes estavam viciados”.
Líderes de opinião o KOL
Os líderes de opinião são apresentados em artigos, comitês de assessoria, programas de conferências e cursos de educação continuada. Entre 2014 e 2019, a Mallinckrodt doou aproximadamente $1 milhão anualmente ao Colégio Americano de Médicos e à Pri-Med, um provedor de cursos de educação continuada, para desenvolver ainda mais iniciativas de avaliação e mitigação de riscos. Esse dinheiro financiou cinco líderes de opinião importantes, entre eles Argoff e outro veterano em educação continuada da Remedies, Bill McCarberg, para desenvolver e ministrar um novo programa sobre a prescrição segura de opióides.
Esses líderes entram para os conselhos de assessoria das empresas. O termo “conselho de assessoria” ou “conselho de publicitário” sugere que os médicos terão a função de assessorar os executivos das empresas farmacêuticas. Porém, mais frequentemente, a orientação flui na direção contrária. Além disso, as reuniões do conselho de assessoria são mais como estratégias para criar fidelizar esses líderes.
Os líderes de opinião dão palestras, usando as apresentações e o roteiro fornecido pelas empresas para evitar os riscos de publicidade não autorizada.
Os palestrantes precisam uma formação, que geralmente recebem durante longos finais de semana em locais atraentes, geralmente organizados pelas denominadas empresas de educação e comunicação médica, que também preparam as apresentações. Um contrato de 2011 com uma dessas empresas, o Grupo Selva, envolveu a criação de quatro grupos de apresentações sobre um produto de metadona que a Mallinckrodt estava distribuindo. O contrato especificava que a Selva forneceria aproximadamente 40 slides para cada apresentação e notas para o palestrante para todos os slides, que seriam avaliados pela Mallinckrodt e por um pequeno número de líderes de opinião que eram escolhidos pela empresa.
As empresas farmacêuticas pagam aos líderes de opinião para lerem apresentações, mas eles também precisam atrair a atenção do público. Em 2010, depois de receber 71 slides para promover o Exalgo, Steven Simon, um especialista em tratamento da dor, reclamou com o coordenador da mesa de palestrantes que “seria difícil manter a atenção dos espectadores” e sugeriu que improvisaria com alguma “conversa criativa”.
A dor é uma doença
Outro aspecto da gestão fantasma da medicina é o planejamento estratégico de artigos e resumos para revistas médicas que devem ser escritos para líderes de opinião apresentarem como prova em reuniões profissionais.
Os conselhos de assessoria e os líderes de opinião estão frequentemente envolvidos no planejamento de publicações. Em uma reunião realizada em junho de 2013 em Dallas, Texas, a Mallinckrodt reuniu 14 de seus principais líderes para fazer um levantamento de pelo menos 12 conceitos preliminares de artigos, em sua maioria artigos de revisão sobre tópicos que englobam desde guias para o tratamento da dor aguda até os mais controversos “fatores de risco para cronificação da dor” ou um diretamente com o título “A hora chegou: a dor é uma doença”.
A MedLogix “pesquisaria, redigiria, revisaria, enviaria e coordenaria a autoria”, um caso clássico de autor fantasma. O primeiro autor do artigo de revisão foi um dos KOL médicos mais prolíficos da Mallinckrodt: Lynn Webster, um dos fundadores de uma organização de pesquisa por contrato, a Lifetree Clinical Research. Lá ele realizou muitos estudos com os produtos da Mallinckrodt, o que gerou milhões de dólares em faturamento. Ele também é autor de documentos patrocinados pela empresa e fez parte de vários conselhos de assessoria.
Webster não era nenhum novato quando se tratava de mau uso de de opióides. Ele era especialista em dor e coautor de uma “ferramenta de risco de opióides”: um questionário de 10 perguntas frequentemente citado, usado para avaliar a probabilidade de os pacientes fazerem uso indevido dos medicamentos. Em 2013, ele foi presidente da Academia Estadunidense de Medicina da Dor. Em um nível pessoal, seu próprio filho se tornou viciado em meados dos anos 2000. Em um livro de memórias recente, Webster descreveu sua profunda angústia e as questões que o vício do filho levantou sobre suas próprias ações. Por fim, ele atribuiu a culpa a uma combinação de genética, constituição interna e talvez circunstâncias familiares, e não à disponibilidade de medicamentos de prescrição.
Stephen Butler, anestesiologista da Universidade de Uppsala, na Suécia, que tinha pesquisado opióides e dor crônica, diz que “não há quase nenhuma boa evidência de pesquisa para apoiar a alegação de que existe qualquer estratégia preventiva no tratamento da dor aguda que impeça a progressão para a dor a longo prazo”. Entretanto, ele destaca que “a interrupção antecipada dos opióides… evitará a dependência de opióides”.
Infelizmente, a interrupção antecipada entrou em conflito com o principal objetivo da Mallinckrodt: vender. Em 2023, a Mallinckrodt faturou $262 milhões com as vendas de opióides, um aumento de 25% em relação ao ano anterior.
Estes mesmos autores publicaram outro artigo sobre este mesmo tema que é de livre acesso em inglês: Bernisson M and Sismondo S: “Promoting opioids, a story about how to influence medical science and opinions” in Frontiers in Medicine, doi:10.3389/fmed.2024.1327939. https://www.frontiersin.org/journals/medicine/articles/10.3389/fmed.2024.1327939/full (de livre acesso en inglês)
Fonte Original