Empresas farmacêuticas têm pago milhões de dólares por ano a médicos australianos para que eles participem de conferências e reuniões no exterior, deem palestras a outros médicos e participem de conselhos consultivos, segundo nossas pesquisas.
Nossa equipe analisou relatórios das principais empresas farmacêuticas, numa primeira análise detalhada desse tipo [1]. Descobrimos que empresas farmacêuticas pagaram mais de A$33 milhões a médicos durante os três anos entre o final de 2019 e o final de 2022 por tais consultorias e despesas associadas.
Sabemos que esse valor é menor do que as empresas farmacêuticas gastaram com os médicos, pois não inclui o benefício mais básico – comida e bebida – o que não é declarado por empresas farmacêuticas na Austrália [2].
Devido às restrições como consequência da COVID, a período que analisamos inclui uma época em que médicos provavelmente estariam viajando menos e participando de menos conferências médicas presenciais. Sendo assim, suspeitamos que os níveis atuais de financiamento das empresas farmacêuticas sejam ainda mais alto, especialmente quando se trata de viagens.
O que fizemos e o que descobrimos
Desde 2019, a Medicines Australia, a associação comercial de empresas farmacêuticas de marca, divulga um banco de dados centralizado que contabiliza pagamentos feitos a profissionais de saúde [3]. Este relatório representa a primeira análise detalhada desse banco de dados.
Fizemos o download dos dados e comparamos os nomes de médicos com as fichas da Agência Australiana de Regulamentação de Profissionais de Saúde (Australian Health Practitioner Regulation Agency,Ahpra) [4]. Em seguida, analisamos quantos médicos especialidade médica receberam pagamentos da indústria por especialidade médica e quanto foi pago por empresas para cada especialidade.
Descobrimos que mais de dois terços de reumatologistas receberam pagamentos da indústria. Reumatologistas normalmente prescrevem novos medicamentos biológicos caros que funcionam para suprimir o sistema imunológico. Esses medicamentos são responsáveis por uma proporção substancial dos custos incluídos nos medicamentos do Esquema de Benefícios Farmacêuticos (Pharmaceutical Benefits Scheme, PBS) [14, 15].
Os especialistas que receberam mais financiamento como um grupo foram médicos de câncer (especialistas em oncologia/hematologia). Eles receberam mais de $6 milhões em pagamentos.
Isto não nos surpreende, considerando que foram recentemente aprovados novos e caros medicamentos contra o câncer. Alguns desses medicamentos trazem avanços maravilhosos ao tratamento; outros oferecem melhora mínima em sobrevivência ou em qualidade de vida [6].
Um estudo de 2023 revelou que médicos que recebiam pagamentos da indústria tinham maior probabilidade de prescrever tratamentos contra o câncer de baixo valor clínico [7].
Nossa análise encontrou que alguns médicos receberam uma série de pequenos pagamentos de algumas centenas de dólares. Também houve instâncias de grandes pagamentos individuais.
Por que tudo isso é importante?
Médicos geralmente acreditam que a promoção feita por empresas farmacêuticas não os afeta [8]. No entanto, a pesquisa nos conta uma história diferente. Pagamentos vindo da indústria podem afetar tanto decisões relacionadas à prescrição pelos próprios médicos quanto as de seus colegas [9].
Um estudo realizado nos Estados Unidos analisando jantares oferecidos a médicos – que custam, em média, menos de $20 – constatou que quanto mais jantares um médico era oferecido, maior quantidade do medicamento promovido ele prescrevia. [10].
Outro estudo constatou que quanto mais jantares um médico era oferecido por fabricantes de opióides (uma classe de analgésicos fortes), maior quantidade de opióides ele prescrevia [11]. A prescrição excessiva teve papel fundamental na crise de opióides sofrida na América do Norte [12, 13].
Em geral, uma quantidade significativa de pesquisas demonstra que o financiamento pela indústria afeta a prescrição, inclusive de medicamentos que não são de primeira opção devido à sua baixa eficácia, segurança ou custo-benefício [14, 15].
Além disso, há médicos que atuam como “líderes de opinião” para empresas. Isso inclui consultores pagos que dão palestras para outros médicos. Um ex-funcionário da indústria que recrutava médicos para tais funções declarou [16]:
“Os principais líderes de opinião funcionam como vendedores para nós, nós constatamos sempre o retorno do nosso investimento, acompanhando a quantidade de prescrições médicas antes e depois apresentações […] Se o palestrante não causasse o impacto que a empresa buscava, ele não seria convidado novamente.”
Sabemos que existem pagamentos para médicos nos EUA
A mais clara evidência que há sobre os efeitos do financiamento da indústria farmacêutica na prescrição vem de um programa administrado pelo governo dos EUA chamado Open Payments [17].
Desde 2013, cada empresa de medicamentos e dispositivos deve declarar qualquer pagamento de acima de $10 em qualquer ano. Os relatórios de pagamento são ligados a produtos promovidos, o que permite aos pesquisadores comparar os pagamentos a médicos com seus hábitos de prescrição.
A análise desses dados, que envolve centenas de milhares de médicos, demonstrou sem nenhuma dúvida que os pagamentos promocionais afetam a prescrição [18].
A pesquisa dos EUA também mostra que os médicos que estudaram em faculdades de medicina que proibiram que alunos recebessem pagamentos e presentes de empresas farmacêuticas eram menos propensos a prescrever medicamentos mais novos e mais caros que apresentassem evidências limitadas de benefícios quando comparados a medicamentos existentes [19].
No geral, as faculdades de medicina australianas possuem restrições fracas ou inexistentes quando se trata de permitir que estudantes de medicina tenham contato com representantes de vendas de produtos farmacêuticos [20], receberem presentes ou participarem de eventos patrocinados pela indústria durante seu treinamento clínico. Elas tão pouco possuem restrições quanto a permitir que integrantes do pessoal acadêmico se engajem em consultorias com fabricantes cujos produtos são apresentados em suas aulas.
Portanto, um primeiro passo para evitar a influência indevida da indústria farmacêutica nas decisões de prescrição é proteger estudantes de medicina dessa influência por meio de políticas mais rígidas que combatam o conflito de interesses, como as mencionadas acima.
A segunda se trata de melhorar a orientação dada a médicos individuais por parte de organizações profissionais e órgãos reguladores sobre os tipos de financiamento que são ou não são aceitáveis. Acreditamos que nenhum médico ativamente envolvido no atendimento ao paciente deve aceitar pagamentos de uma empresa farmacêutica para palestras, viagens internacionais ou consultorias.
Em terceiro lugar, se a Medicines Australia se diz levar a sério a transparência, ela deve exigir que as empresas declarem todos os seus pagamentos – inclusive de alimentos e bebidas – e que incluam os nomes dos profissionais de saúde junto dos seus números de registro na Ahpra. Isso é parecido com a norma de relatório adotada por empresas farmacêuticas nos EUA e permitiria uma perspectiva mais completa e clara do que está acontecendo na Austrália.
Os pacientes confiam em médicos para escolherem os melhores tratamentos disponíveis para atender às suas necessidades de saúde com base em evidências científicas de segurança e eficácia. Eles não contam com a influência do marketing nessa escolha.
Referências