A EMA admite que alguns dos seus especialistas mais relevantes não estão submetidos ao código de conduta dos funcionários públicos europeus porque “não são funcionários da Agência”.
A cena parece ter saído de um filme de comédia:
“Quando estivemos em Amsterdã, tentamos repetidamente evitar ficar em hotéis onde esperávamos que os membros do Comitê de Medicamentos também estivessem hospedados. Mas, em algumas ocasiões, nossos clientes planejaram eventos em hotéis perto da Agência de Medicamentos. Em tais situações, tentamos evitar encontrar os membros do Comitê, por exemplo, tomando café da manhã após o início da reunião do Comitê. É verdade que não tivemos 100% de sucesso, pois algumas vezes encontramos acidentalmente membros do Comitê, por exemplo, no salão.
O homem que teve que tomar café da manhã mais tarde para não encontrar ex-colegas e depois teve que ir se desviando deles pelos corredores é o sueco Tomas Salmonson. Entre 2012 e 2018, ele foi uma das pessoas mais poderosas da Agência Europeia de Medicamentos (EMA, siglas em inglês), o órgão responsável por autorizar a comercialização dos principais fármacos consumidos na Espanha e no resto da UE. Em dezembro de 2018, três meses depois de deixar o cargo de presidente do Comitê de Medicamentos da EMA, ele montou sua própria consultoria e começou a trabalhar para as empresas farmacêuticas cujos produtos ele vinha determinando há anos. Levando em conta que em 2019 havia 524 hotéis em Amsterdã, parece incrível que Salmonson não tenha sido capaz de encontrar uma hospedagem onde pudesse tomar café da manhã na hora certa e passear tranquilamente pelo salão.
Salmonson deu essa explicação aos jornalistas da Investigate Europe que lhe perguntaram sobre seus negócios após deixar a EMA. Um relato quase idêntico foi dado pelo britânico Robert Hemmings, parceiro de Salmonson em atividades de consultoria para farmacêuticas, que também foi membro do Comitê de Medicamentos da EMA. Ambos negam qualquer comportamento impróprio e afirmam que não houve conflito de interesses. Nas palavras de Hemmings: “Não acredito que eu tenha iniciado uma única comunicação com qualquer membro do Comitê de Medicamentos desde que deixei de ser membro (e-mail, texto, LinkedIn, etc.). Nós dois sacrificamos várias amizades pessoais desde que deixamos nossas funções na EMA para manter uma distância profissional adequada dos membros do Comitê”.
As atividades dos mais novos consultores em Amsterdã não agradaram ao italiano Guido Rasi, então diretor executivo da EMA: “Não estava em minhas mãos influenciar o trabalho do Comitê de Medicamentos, mas recebi relatos de que alguns de seus membros haviam sido contatados por Salmonson e Hemmings em hotéis em frente à sede da EMA, então decidi agir. Pedi ao presidente do Comitê que interrompesse a sessão e desligasse as telas, expliquei os relatos que havia recebido e enviei um sinal claro de que estava preparado para fazer qualquer coisa para impedi-los, inclusive encaminhar o assunto ao OLAF”, explica Rasi em conversa com a Investigate Europe. [OLAF (https://anti-fraud.ec.europa.eu/index_es) é o Escritório Europeu do combate à Fráude, siglas em inglês.]
Em seguida, Guido Rasi menciona algo surpreendente: “Se Salmonson e Hemmings fossem funcionários da EMA, eles não teriam conseguido montar sua consultoria em dois anos, mas em nível estadual as leis são diferentes”.
Esse relatório faz parte da pesquisa sobre o poder e os negócios das grandes farmacêuticas, realizada pela da Investigate Europe. Em um dos relatórios já publicados, foi revelado que a EMA recebe quase metade de sua renda de 21 grandes farmacêuticas, mostrando a dependência financeira da Agência em relação às empresas que ela deve regulamentar.
A EMA tem pouco mais de mil pessoas empregadas, mas, como o representante explicou aos jornalistas, isso não inclui os membros do todo-poderoso Comitê de Medicamentos: “Os membros dos Comitês da EMA, incluindo seus presidentes, não são funcionários da EMA e, portanto, não se aplica o Estatuto dos Funcionários da UE. Estão sujeitos às regras em vigor na organização que os emprega”. Portanto, acrescentou a representante, Salmonson e Hemmings “não eram obrigados a informar a EMA sobre suas atividades de consultoria depois que cessaram seu envolvimento nas atividades da Agência. Tal informação pode ter sido prevista nas normas estabelecidas por suas Agências nacionais.
Para enfrentar o desafio das portas giratórias, a UE aprovou normas específicas no Estatuto de seus funcionários. Quando estes quiserem assumir uma atividade dentro do prazo de dois anos após deixar a Administração comunitaria, ele deverá solicitar autorização para fazê-lo. Se existir risco de conflito de interesses, a Comissão Europeia pode proibir essa contratação ou impor condições ou restrições às atividades do ex-funcionário.
Mas essas normas, segundo o que reconhece a EMA, não poderiam ser aplicadas a Salmonson e Hemmings. Uma situação que causa surpresa na Transparência Internacional. “É incrível que não existam normas para evitar casos de porta giratória onde estão implicados especialistas científicos. Essa situação destaca uma grande falha no sistema de integridade da UE”, disse Shari Hinds, chefe de integridade política da ONG, ao Investigate Europe.
Quanto ao fato de Salmonson e Hemmings terem estabelecido sua consultoria poucos meses depois de deixarem a EMA, Shari Hinds lembra que o Comitê de Medicamentos “desempenha um papel crucial na regulamentação de fármacos e, em última análise, na proteção da saúde dos cidadãos da UE, portanto, esse caso de porta giratória é um assunto que afeta a imagem geral da UE”. Sendo assim, a Transparência Internacional pede que a EMA “implemente normas eficazes e abrangentes para evitar esses casos de porta giratória no futuro”.
As agências nacionais para as quais trabalhavam Salmonson e Hemmings também não freiaram suas atividades.
A Agência Sueca de Produtos Médicos (https://www.lakemedelsverket.se/en) confirmou que Salmonson foi contratado por eles até 10 de fevereiro de 2019 e depois trabalhou em tempo parcial até o final daquele ano. Em outras palavras, Salmonson abriu sua consultoria enquanto ainda era empregado da agência. De qualquer forma, o representante da Agência Sueca foi muito claro sobre a falta de regulamentação no caso das chamadas portas giratórias: “Na Suécia faltam normas sobre as denominadas restrições transitórias em relação a um funcionário que termina sua relação de trabalho com uma autoridade e se muda, por exemplo, para o setor privado”.
Por outro lado, um representante da Agência Reguladora de Medicamentos do Reino Unido indicou que Hemmings fez parte de sua equipe de abril de 2000 a 12 de fevereiro de 2019. Ele explicou ainda que os funcionários públicos do Reino Unido devem atender a uma série de requisitos em relação aos empregos que aceitam dentro de dois anos após deixarem seus cargos. Contudo, quando questionado sobre como essas normas afetavam Hemmings em particular, ele disse que não poderia responder: “Estamos em um período pré-eleitoral no Reino Unido e não podemos fazer comentários sobre consultas que não estejam relacionadas à saúde pública.
Tomas Salmonson deixou a presidência do Comitê de Medicamentos da EMA em 21 de setembro de 2018 (https://www.ema.europa.eu/en/news/emas-committee-medicinal-products-human-use-chmp-elects-new-chair). Três meses depois, em 19 de dezembro, ele se inscreveu no registro Comercial Sueco a empresa Consilium Sweden AB. Poucos dias depois, em 9 de janeiro de 2019, seu sócio constituiu a Consilium Hemmings (UK) Ltd na Inglaterra. Salmonson criou uma terceira empresa em 2020, a Consilium Sverige AB, para seus clientes locais.
Um site, Consilium Salmonson & Hemmings, apresenta um relato de seus negócios juntos. “Como indivíduos, trouxemos conhecimento técnico e regulatório para a regulamentação de medicamentos na UE, mas nosso melhor trabalho foi em equipe. Juntos, desenvolveremos e testaremos sua compreensão dos métodos de desenvolvimento de medicamentos, normas de autorização e o uso otimizado dos procedimentos regulatórios”, promovem em seu site.
Salmonson reconheceu à Investigate Europe que entre seus clientes incluíam farmacêuticas cujos solicitações de comercialização de medicamentos haviam passado pelo Comitê da EMA que ele presidiu: “Tecnicamente, eu não tomava decisões e nem emitia opiniões. Eram os membros do Comitê que, coletivamente, tomavam todas as decisões. Como presidente, eu não tinha direito a voto. Foram os votos dos 33 membros da época que decidiram a posição. Mas, sim, trabalhei para empresas sobre as quais o Comitê de Medicamentos emitiu opiniões (positivas e negativas) quando eu era presidente. Além de ser presidente por seis anos, Salmonson foi membro do Comitê de Medicamentos durante outros 12 anos.
Hemmings não respondeu à mesma pergunta sobre seus clientes. Ele fez parte do Comitê de Medicamentos durante onze anos.
As empresas suecas da Salmonson registraram um lucro líquido de mais de €4,4 milhões desde sua constituição, de acordo com uma análise de suas contas anuais. A empresa de Hemmings não tem a obrigação de informar sua receita, mas suas contas simplificadas mostram que ela acumulou lucros não distribuidos de €1,8 milhão até março de 2023.
Salmonson também faz parte do conselho da Pharmetheus, uma consultoria sueca que negocia autorizações de medicamentos para grandes clientes farmacêuticos. Em 2021, ele entrou para o conselho (http://www.winhealth.hk/leadership.html?typeId=58) de assessoria científica (http://www.winhealth.hk/leadership.html?typeId=58) da Winhealth, uma empresa chinesa cujos clientes (http://www.winhealth.hk/) incluem multinacionais como Roche, Pfizer e Daiichi Sankyo. Salmonson disse aos repórteres fazia tempo que trabalha para a Winhealth há algum tempo.
Nos últimos anos, algumas empresas começaram a levar pra justiça os possíveis conflitos de interesse dos cientistas que são contratados pela EMA. Uma delas foi a empresa espanhola PharmaMar.
A empresa apresentou um pedido para comercializar um medicamento para mieloma múltiplo, mas a EMA rejeitou. A PharmaMar recorreu aos tribunais, entre outras questões, porque o sueco Hareth Nahi, que havia sido adicionado como “especialista adicional” ao Grupo Consultivo Científico de Oncologia que analisou o fármaco, tinha um possível conflito de interesses. A PharmaMar ganhou a ação em primeira instância, em 2020, mas três países -Alemanha, Estônia e Holanda- apelaram alegando falha. O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) deu razão a eles e ordenou que o tribunal de primeira instância desse uma nova sentença. O veredito deve ser publicado nos próximos meses.
Hareth Nahi está listado como coproprietário de uma patente de um fármaco para mieloma múltiplo registrado pela empresa sueca CellProtect. O pesquisador se recusou a responder às perguntas da Investigate Europe, alegando que não lembrava de “nada” de suas reuniões com a EMA.
O laboratório francês D&A Pharma teve mais sorte no chamado caso Hopveus, que se refere a um fármaco de mesmo nome indicado para tratar a síndrome de abstinência alcoólica. A EMA negou a autorização (https://ec.europa.eu/health/documents/community-register/2020/20200706148361/anx_148361_es.pdf) e a empresa francesa recorreu aos tribunais. O TJUE, em uma sentença realizada em março, decidiu a seu favor e anulou a decisão negativa da EMA ao detectar um conflito de interesses em um dos especialistas consultados.
Um representante da EMA diz que eles têm “uma política muito rigorosa sobre a gestão de interesses concorrentes dos membros de comitês científicos e dos especialistas”. Essa política, ela acrescenta, “permite que a Agência restrinja ou exclua a possível participação de um especialista devido a interesses na indústria farmacêutica”.
A EMA tem o monopólio para aprovar todos os medicamentos contra o câncer, diabetes, doenças neurodegenerativas, doenças raras ou virais e aqueles produzidos por meio de processos biotecnológicos ou de terapias genéticas. Suas decisões afetam milhões de pacientes. E elas também têm consequências milionárias para as contas de faturamento das empresas farmacêuticas.
Para entender o que está em jogo, talvez sirva uma história contada por Guido Rasi em 2014, quando a EMA ainda tinha sua sede em Londres: “Uma vez mandaram drones. Um técnico viu eles perto das janelas do Comitê de Medicamentos. Tivemos que correr para escurecer as telas dos computadores com as anotações de uma reunião”.