Em maio de 2024, a gigante farmacêutica AstraZeneca anunciou a retirada mundial de sua vacina contra a covid-19 baseada em vetor adenoviral, desenvolvida em colaboração com a Universidade de Oxford.
Quando surgiu como uma candidata a vacina no final de 2020, foi aclamada como um marco na luta contra a pandemia.
Mas, nos anos subsequentes, a vacina foi atormentada por dúvidas sobre sua eficácia, regime de dosagem e questões de segurança.
Perguntas válidas foram levantadas sobre como a vacina contra a covid-19 da AstraZeneca chegou ao mercado. Então, decidi fazer uma retrospectiva do seu desmoronamento.
Alegações exageradas
A vacina da AstraZeneca foi autorizada no Reino Unido, Europa, Ásia e Austrália.
Em fevereiro de 2021, a AstraZeneca alardeou em um comunicado de imprensa que os primeiros resultados de seu ensaio clínico de fase III mostraram que a vacina poderia fornecer 100% de proteção contra doenças graves, hospitalização e morte [1].
A notícia se espalhou pelo mundo. De jornais sensacionalistas a revistas médicas, todos estavam ansiosos para relatar essa descoberta extraordinária do comunicado de imprensa da empresa farmacêutica.
Os políticos se juntaram ao coro.
O então ministro da saúde australiano, Greg Hunt, apareceu diante da imprensa para atestar a segurança da vacina e incentivar as pessoas a tomá-la [2].
O primeiro-ministro, Scott Morrison, afirmou que os australianos podiam ter “confiança absoluta” na vacina e mostrou entusiasmo pelo fato de que mais de 50 milhões de doses seriam fabricadas em uma instalação local em Melbourne [3, 4]. Mas será que era bom demais para ser verdade?
Em uma repreensão inesperada, o Comitê de Supervisão de Segurança de Dados (DSMB ou Data Safety Monitoring Board), que era responsável por supervisionar o ensaio clínico, repreendeu a AstraZeneca por divulgar dados “selecionados por conveniência”, que poderiam ter dado a impressão de que a vacina era mais eficaz do que realmente era [5]. “Decisões como esta são as que enfraquecem a confiança do público no processo científico”, comentou o Comitê de Supervisão de Segurança de Dados.
O Comitê de Supervisão de Segurança de Dados também escreveu à agência de Anthony Fauci, os Institutos Nacionais de Saúde (NIH ou National Institutes of Health) [6], preocupado com o fato de que a AstraZeneca havia divulgado “informações desatualizadas desse ensaio, que poderiam ter proporcionado uma visão incompleta dos dados sobre a eficácia da vacina”.
Mas Fauci minimizou as preocupações, dizendo a milhões de espectadores no Good Morning America que se tratava simplesmente de um “equívoco” da AstraZeneca, e que o Comitê de Supervisão de Segurança de Dados estava sendo “bastante rigoroso”.
“É realmente lamentável que isso tenha acontecido”, disse Fauci aos telespectadores [7]. “O fato é que é muito provável que se trate de uma vacina muito boa, e esse tipo de coisa… realmente lança algumas dúvidas sobre as vacinas e talvez contribua para a hesitação. Não era necessário.”
Surgem os coágulos sanguíneos
Pouco depois do lançamento da vacina, começaram a aparecer sinais preocupantes.
Os sistemas de vigilância europeus detectaram casos graves de uma doença de coagulação sanguínea chamada trombose com trombocitopenia (STT) após a vacinação, que estavam causando incapacidade grave, hospitalização e morte.
A Áustria foi o primeiro país a agir
Em 7 de março, as autoridades austríacas anunciaram que suspenderiam um único lote da vacina da AstraZeneca [8], depois que duas mulheres (de 35 e 49 anos) desenvolveram graves coágulos sanguíneos; uma delas faleceu.
Quatro dias depois, três países nórdicos — Dinamarca, Noruega e Islândia — suspenderam completamente a vacina da AstraZeneca [9], até que pudessem obter mais dados sobre sua segurança.
Um a um, os países europeus começaram a abandonar a vacina [10]: Alemanha, França, Espanha, Estônia, Lituânia, Luxemburgo, Itália e Letônia.
Estava se desenrolando um desastre de relações públicas.
Gestão da crise
Todos, desde os responsáveis políticos até os meios de comunicação e as sociedades acadêmicas, entraram em ação para minimizar as dúvidas sobre a vacina.
John Skerritt, chefe da Agência Reguladora de Medicamentos da Austrália, a Administração de Bens Terapêuticos (TGA ou Therapeutic Goods Administration), declarou em uma rádio de Sydney que sua agência “não havia encontrado nenhuma evidência desses coágulos” entre os australianos [11].
Paul Kelly, diretor médico australiano, afirmou que “não havia evidências de que causava coágulos sanguíneos”, e o primeiro-ministro Morrison disse que não havia recebido “nenhum conselho para pausar o lançamento na Austrália” [12, 13].
Em meio a toda a publicidade sobre os coágulos sanguíneos, a AstraZeneca anunciou sua intenção de recrutar um novo “Especialista em Comunicações” para ajudar a transformar a narrativa negativa em positiva.
A AstraZeneca também iniciou colaborações com celebridades internacionais, como o músico e vencedor do Oscar Jeff Bridges, que participou da campanha “Up The Antibodies” (“Aumente os Anticorpos”) para incentivar a vacinação e outros tratamentos da AstraZeneca [14].
A Academia Australiana de Ciências anunciou que, após a vacinação, o risco de morte por trombose com trombocitopenia (STT) era de “um em um milhão”, e que era mais provável ser atingido por um raio do que morrer dessa doença [15].
No entanto, pouco pôde ser feito para conter o fluxo de relatos de pessoas que estavam morrendo por coágulos sanguíneos graves, pouco depois da vacinação.
Em maio de 2021, a agência reguladora de medicamentos do Reino Unido informou sobre 242 casos de coágulos e 49 mortes, após a injeção com a vacina da AstraZeneca [16], o que levou o Comitê Conjunto de Vacinação e Imunização (JCVI ou Joint Committee on Vaccination and Immunisation) a recomendar que uma vacina alternativa fosse oferecida a menores de 40 anos.
O governo australiano atualizou discretamente os formulários de “consentimento informado” que eram entregues às pessoas que desejavam se vacinar, para incluir perguntas sobre seus antecedentes de coágulos sanguíneos.
O Grupo Australiano de Assessoria Técnica sobre Imunização (ATAGI ou Australian Technical Advisory Group on Immunisation) mudou suas recomendações e propôs que a vacina fosse limitada a pessoas acima de 50 anos [17].
Dois meses depois, o ATAGI elevou [18] o limite de idade para acima de 60 anos.
Ensaio clínico corrupto
O ensaio clínico de fase III da AstraZeneca foi controverso desde o início. Foi realizado em vários centros de pesquisa, e os participantes estavam em protocolos diferentes [19].
Alguns participantes receberam uma dose, outros duas. Alguns receberam placebos de solução salina, enquanto outros receberam a vacina meningocócica (MenACWY) como placebo, além de paracetamol para ajudar a “cegar” os participantes.
Isso dificultou a avaliação dos efeitos adversos de todo o ensaio e também levou a erros de dosagem, já que alguns participantes receberam doses mais baixas da vacina que outros [20].
Para complicar ainda mais, a AstraZeneca teve que explicar por que aqueles que receberam uma dose mais baixa na primeira injeção estavam mais protegidos contra a infecção do que os que receberam duas doses completas [21].
Quando finalmente os resultados do ensaio clínico foram publicados na revista médica New England Journal of Medicine, um dos participantes denunciou os pesquisadores [22].
Brianne Dressen participou do ensaio e se sentiu mal quase imediatamente após a primeira dose. Ela começou a sentir formigamento e agulhadas no braço direito, um distúrbio denominado parestesia, que se espalhou para o braço esquerdo e outras partes do corpo.
Naquela mesma noite, surgiram outros sintomas progressivamente preocupantes, como visão embaçada, visão dupla, dor de cabeça, sensibilidade ao som, um forte zumbido nos ouvidos (tinnitus), náuseas, vômitos, febre e calafrios.
Os pesquisadores a retiraram do ensaio e desativaram o aplicativo do seu smartphone com o qual ela registrava todos os seus sintomas, apagando assim seus registros.
A publicação do ensaio no New England Journal of Medicine também não incluía informações sobre os danos que a vacina lhe causou, e quando Dressen pediu ao editor-chefe da revista, Eric Rubin, que corrigisse a publicação para incluir seus dados, ele se recusou [23].
Demandas em curso
Em março deste ano, dezenas de pacientes e familiares iniciaram ações legais contra a AstraZeneca na Suprema Corte do Reino Unido, depois que a vacina tirou a vida de seus entes queridos ou deixou sequelas catastróficas por STT [24].
Jaime Scott é o principal demandante, que sofreu um dano cerebral permanente por um coágulo de sangue, após receber a vacina da AstraZeneca em abril de 2021.
O caso foi apresentado sob a Lei de Proteção ao Consumidor do Reino Unido, para contornar a imunidade legal que o governo britânico concedeu à AstraZeneca no momento em que as vacinas foram aprovadas.
Os documentos judiciais deste caso revelam que a AstraZeneca admitiu que sua vacina contra a covid-19 pode, em casos muito raros, causar STT [25].
Também em maio deste ano, Dressen entrou com uma ação contra a AstraZeneca, depois que a empresa se recusou a cobrir seus gastos hospitalares e as crescentes contas médicas [26].
O formulário de consentimento que ela assinou antes de participar do ensaio clínico estipulava que a empresa “cobriria os custos dos danos ocasionados pela pesquisa” e que “pagaria os gastos com o tratamento médico” [27].
Dado que a AstraZeneca se recusou a cumprir suas obrigações, Dressen está buscando reparação pelos danos econômicos e emocionais passados e futuros.
Adeus à vacina
Em outubro de 2021, quase 12,5 milhões de doses da vacina da AstraZeneca foram administradas a australianos.
Mas os temores persistentes de coágulos sanguíneos potencialmente mortais levaram as autoridades a recomendar outras marcas de vacinas contra a covid-19 (Pfizer e Moderna).
A fabricação da vacina da AstraZeneca na Austrália cessou no final de 2021, e em março de 2023 já não estava disponível [28].
Até o momento, a Administração de Bens Terapêuticos da Austrália afirma que a incidência de STT, após a vacina da AstraZeneca, é de 1 em 50.000.
Apesar de terem sido notificadas mais de 1.000 mortes à Administração de Bens Terapêuticos após a vacinação contra a covid-19, apenas 13 mortes foram atribuídas à vacina da AstraZeneca.
Em 2021, foi apresentada uma solicitação de liberdade de informação à Administração de Bens Terapêuticos, pedindo detalhes de sua investigação sobre as mais de 1.000 mortes notificadas, mas a agência negou a solicitação, o que levanta sérias dúvidas sobre se alguma vez foi realizada uma investigação exaustiva e independente sobre as mortes relacionadas à vacina contra a covid-19 na Austrália.
Referências