No sábado passado, 19 de outubro de 2024, durante a 75ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial (AMM), realizada em Helsinque, foi adotada a nova versão da Declaração de Helsinque (DH). A Redbioética/Unesco participou das consultas públicas dessa revisão, apresentando uma série de recomendações* para elevar os padrões éticos da pesquisa médica, especialmente em contextos de vulnerabilidade. No entanto, a maioria dessas recomendações não foi aceita, e poucas foram parcialmente incorporadas no documento final. Embora alguns pequenos avanços tenham sido alcançados, os grandes retrocessos históricos permanecem, como a flexibilidade no uso do placebo, comprometendo a proteção efetiva dos direitos humanos e a equidade na pesquisa médica em nível global.
Entre os pontos que representam um avanço positivo na nova DH está a inclusão de novos atores no campo da pesquisa. Embora tradicionalmente direcionada aos médicos, a DH agora recomenda que seus princípios também se apliquem às equipes de pesquisa e às organizações (§2). Esse avanço amplia a responsabilidade ética, promovendo uma maior conscientização sobre a proteção dos participantes.
A versão de 2024 da DH passou a reconhecer mais explicitamente as desigualdades estruturais na pesquisa médica, destacando a importância do envolvimento significativo dos participantes e de suas comunidades em todas as fases da pesquisa (§6). Isso representa um passo à frente no sentido aspiracional de promover a justiça social. No entanto, seriam necessários avanços mais significativos no uso do placebo e no acesso pós-ensaio para aumentar a viabilidade dessa aspiração.
Outro avanço foi o reconhecimento de que intervenções não comprovadas na prática terapêutica nunca devem ser utilizadas para contornar as proteções éticas estabelecidas pela DH. A Declaração agora estabelece que o uso clínico de intervenções não comprovadas deve ser objeto de pesquisa para avaliar sua segurança e eficácia (§34).
No entanto, as sugestões da Redbioética/Unesco não foram plenamente incorporadas, particularmente aquelas que buscavam aumentar o rigor em áreas sem regulamentação clara. Entre as recomendações não aceitas estão a revisão obrigatória por comitês de ética em contextos sem regulamentação, a criação de um esquema abrangente de monitoramento da segurança e eficácia com coleta contínua de dados, e a exigência de que estudos observacionais sejam reportados aos comitês de ética. A ausência dessas medidas cria lacunas que podem comprometer a supervisão adequada do uso de intervenções não comprovadas, especialmente em contextos de crise de saúde pública, colocando em risco a segurança dos participantes nas pesquisas.
Apesar desses pequenos avanços, a DH de 2024 manteve grandes retrocessos históricos, enfraquecendo o que poderia ter sido um marco para melhorar e ampliar a proteção dos participantes de pesquisa em todo o mundo. De certa forma, persistem práticas que podem favorecer os “duplos padrões”, onde pesquisas inaceitáveis em países ricos continuam a ser realizadas em nações periféricas.
Entre esses retrocessos está a ausência de restrição ao uso de placebos. A Redbioética/Unesco havia proposto que o uso de placebos fosse permitido em ensaios clínicos apenas quando não houvesse um comparador comprovado, eficaz e seguro. No entanto, a versão final da DH mantém a flexibilidade no uso de placebos, permitindo sua aplicação em circunstâncias metodologicamente justificáveis, mesmo quando já existem tratamentos eficazes, o que contradiz o artigo que estabelece que os interesses dos participantes estarão sempre acima dos da ciência e da sociedade. Esse ponto já havia sido abordado de maneira mais rigorosa na versão de 2000 da Declaração, que oferecia a maior proteção aos participantes quanto ao uso de placebos e ao acesso pós-ensaio.
A questão do acesso garantido às intervenções comprovadas como seguras e eficazes também foi tratada de forma insuficiente. A Redbioética/Unesco havia sugerido que os participantes continuassem a ter acesso às intervenções após o término do estudo, com estratégias científicas e éticas implementadas para garantir o acesso no sistema de saúde pública das comunidades anfitriãs, financiadas pelos patrocinadores. Embora a DH reconheça essa necessidade, as estratégias propostas para garantir esse acesso foram deixadas em aberto, sem um compromisso claro de implementação por parte dos patrocinadores.
Isso enfraquece a justa distribuição dos resultados da pesquisa, em contradição com os princípios defendidos pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco, que destaca que os benefícios da pesquisa científica devem ser distribuídos de forma equitativa entre todas as sociedades, especialmente com os países em desenvolvimento.
A Redbioética/Unesco continuará trabalhando para que futuras revisões da DH abordem essas lacunas e elevem os padrões éticos globais, para que a pesquisa médica seja realizada de maneira justa e equitativa, especialmente nos países mais pobres, onde muitas pesquisas da indústria biomédica, especialmente das grandes corporações farmacêuticas, são terceirizadas para reduzir custos, enquanto o acesso a essas terapias não está disponível nem acessível.
(*) As opiniões aqui expressas são de responsabilidade da Redbioética, não refletindo necessariamente as da UNESCO e não devem comprometer a organização de forma alguma. As denominações empregadas e a forma como os dados aparecem não implicam, por parte da UNESCO ou da Redbioética, qualquer julgamento sobre a condição jurídica de países, territórios, cidades, pessoas, organizações, zonas ou suas autoridades, nem sobre a delimitação de suas fronteiras ou limites.
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