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Livros

Resenha do livro: Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica

María Florencia Chapini
Fonte: Revista Eletrônica de Ciências Sociais, Juiz de Fora, n. 34 (2021). DOI: https://doi.org/10.34019/1981-2140.2021.35109
Selecionado por Salud y Fármacos, publicado em Boletim Fármacos: Ensaios Clínicos 2023; 1(1)

Através de uma etnografia inovadora e crítica, a antropóloga brasileira Rosana Castro analisa e questiona a produção farmacêutica contemporânea focando especificamente na experimentação de medicamentos em seres humanos no Brasil. O livro chamado “Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica” descreve alguns dos procedimentos, práticas, relações e atores envolvidos no ensaio clínico randomizado internacional duplo-cego controlado – doravante, o ECR2. O método ECR, segundo explica Castro, é o mais utilizado pela indústria farmacêutica para produzir medicamentos, o preferido pela biomedicina e é o mais aceito pelas agências regulatórias de cada país. A análise é feita através de uma escrita que concilia termos próprios da farmacologia para organizar dados do trabalho de campo, conseguindo fazer uma crítica localizada à produção farmacêutica internacional a partir da explicitação das diferenças nacionais, populacionais, raciais e econômicas que compõem a experimentação, em conformidade com dinâmicas globais, neocoloniais e neoliberais.

O livro é fruto da tese de doutorado, realizada na Universidade de Brasília e premiada pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) no ano de 2019. A autora tem uma interessante trajetória de pesquisa como também profissional, que segundo ela, foram elementos fundamentais para a construção do objeto de pesquisa da tese.

Em primeiro lugar, cabe destacar o interesse pelo tema da produção de medicamentos desde a graduação, quando pesquisou o misoprostol3. Isso lhe permitiu questionar a produção de diferentes efeitos dos medicamentos, como por exemplo, “terapêutico”, “adverso”, “legal”, “proibido”; assim como a regulamentação dos medicamentos, tema que abriu sua pesquisa de mestrado. Nessa oportunidade, dedicou-se à regulamentação de substâncias dedicadas ao tratamento da obesidade, chegando mais perto da vigilância sanitária e da experimentação de medicamentos em seres humanos. Ali conseguiu ver que a experimentação de um medicamento é produto de um complexo processo em que participam diversos atores e, dentre eles, a vigilância sanitária acionada pelo Estado é fundamental. É interessante ver que não só a trajetória acadêmica e de pesquisa constituem a riqueza da produção intelectual da autora. Entre a passagem da graduação ao mestrado, Rosana Castro trabalhou no Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília. Após o mestrado, ingressou no Ministério de Saúde, no Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (Decit/SCTIE/MS), na área de Bioética e Ética em Pesquisa. Essas duas experiências laborais foram fundamentais, segundo Castro (2018), já que deram ferramentas para entender o campo, fazer questões e chegar ao objeto da pesquisa de doutorado.

O método ECR é considerado “padrão-ouro” no mundo para a produção de evidências científicas sobre o uso de medicamentos. Assim, além de entrevistas com profissionais que trabalham em eventos públicos da área, fez trabalho de campo em um centro de pesquisa privado que conduz experimentos com fármacos, chamado ficticiamente de Cronicenter. A experimentação farmacêutica não é olhada por Castro como um método isolado, senão que entende o ECR como um produto de relações de diferentes atores em escala nacional e internacional ao redor de um experimento. Assim, Castro mostra as etapas do experimento e os diferentes atores envolvidos nele, tais como a indústria farmacêutica, as Clinical Research Organizations (CROs) – empresas mediadoras entre indústria farmacêutica e centros de pesquisas -, centros de pesquisa clínicas locais, agências reguladoras do Estado e sujeitos (doentes) que participam de pesquisas. Para pensar esses processos, Rosana Castro cunha a categoria economias políticas da doença e da saúde como eixo central de todo o livro. Essa categoria faz referência às

Relações nas quais, por um lado, indústrias farmacêuticas multinacionais e o estado brasileiro especulam, negociam e capitalizam no mercado global da pesquisa clínica sobre sua própria população, caracterizada em termos de sua classificação racial e étnica, seus indicadores epidemiológicos e seu precarizado acesso a tecnologias e serviços de saúde gratuitos e de qualidade (CASTRO, 2020, p. 31).

Essas caracterizações da população, conforme mostra Castro no livro, vêm sendo elementos mobilizados por atores tais como parlamentares, gestores nacionais de políticas de saúde e de ética em pesquisa, que promovem a atração de investimentos internacionais para o país e diversificam a oferta de serviços e tecnologias de saúde, por meio da disponibilização de sujeitos adoecidos para os experimentos.

O empreendimento etnográfico que constrói para mostrar como funcionam as chamadas economias políticas da doença e da saúde é uma mistura entre conceitos da farmacologia e a etnografia, nomeado por Castro de farmacografia. Tal como se propõe, a farmacografia se baseia em fazer um exercício político pelo qual, através da escrita, apropria-se da linguagem da ciência biomédica. Para a antropóloga esse exercício tem o objetivo de, por um lado não deixar só com os cientistas temas que nos são tão caros como é a saúde e, por outro usar os conceitos da farmacologia para mostrar como a produção de medicamentos está associada à violência colonial racista que, logo de um processo de purificação, acaba sendo nomeado como uma descoberta de tratamentos médicos. Dessa maneira, a farmacografia é definida como uma performance textual, não de acordo epistêmico, senão de traição, já que consegue propor uma análise crítica a partir de categorias êmicas.

O livro está composto por três partes principais que dizem a respeito à farmacografia e que são movimentos onde a autora vai costurando conceitos da farmacologia com a etnografia: Princípio ativo, Farmacocinética e Farmacodinámica. A primeira parte chamada Princípio ativo, trata da construção do objeto de pesquisa antropológico e à contextualização da constituição do ECR como “padrão-ouro” na produção de evidências científicas sobre medicamentos.

Já na segunda parte intitulada Farmacocinética, a autora se dedica a explicar como os ECRs chegam na América Latina, e mais especificamente ao Brasil, até conseguir começar a ser testado em seres humanos. Na farmacologia, farmacocinética é usado para se referir aos processos pelos quais os fármacos são administrados, os tecidos e órgãos pelos quais se relacionam, até ser expulsados do organismo humano; esse processo também faz referência aos efeitos que o próprio corpo humano gera no fármaco. As etapas da farmacocinética são absorção, distribuição, metabolismo e excreção; essas etapas pelas quais um medicamento passa pelo corpo foi usado por Castro para pensar, em termos políticos e econômicos, a relação entre os laboratórios farmacêuticos, as CROs, órgãos governamentais, centro de pesquisa e, finalmente, os sujeitos nos quais são experimentados os medicamentos.

Na etapa da absorção, o medicamento não é lançado ao mercado livremente para ser experimentado. Muito pelo contrário, o livro mostra como é trabalhoso começar um experimento já que as empresas farmacêuticas precisam estimar se vão conseguir recrutar pacientes para testar, o tempo que o processo vai levar e que as agências regulamentares dos países não impossibilitem a experimentação. Nesse sentido, América Latina se converteu em um alvo da experimentação por ter, em termos farmacológicos, sujeitos biodisponíveis. Mas, para Castro, os sujeitos na América Latina são “vendidos” como [mor]biodisponivéis, morbio- faz referência à população doente na região que é vista como rapidamente acessível –disponível. A autora afirma:

Nesse sentido, se para a farmacologia a noção de biodisponibilidade “é um termo usado para descrever a porcentagem na qual uma dose do fármaco chega ao seu local de ação, ou a um líquido biológico a partir do qual o fármaco chegou ao seu local de ação” (Buxton, 2010, p.3), entendo a morbiodisponibilidade como um termo que designa os processos especulativos por meio dos quais CROs e laboratórios farmacêuticos caracterizam as populações latinoamericanas por seu perfil epidemiológico – relacionado, portanto, às taxas de morbidade dos países da região – e pela previsão de que tais sujeitos doentes seriam facilmente inseridos em estudos clínicos (CASTRO, 2020, p.138).

Ainda dentro da morbiodisponibilidade, há outro ponto fundamental na seleção do Brasil como um país competente para fazer os estudos, a saber: a representatividade de escala global no que diz respeito às classificações populacionais internacionais em termos raciais. Assim, para a indústria farmacêutica, o Brasil se converte em uma espécie de laboratório ao ter sujeitos com as doenças que mais incidem dependendo dessas classificações raciais. Isso traz como consequência que o processo seja mais barato e mais fácil para o mercado farmacêutico, já que, por um lado, não é necessário fazer experimentos em diferentes países e, por outro, permite que as indústrias tenham que lidar com a burocracia da regulação da pesquisa em um país só. Para Castro, os interlocutores mobilizam positivamente e estrategicamente a miscigenização por considerar que o Brasil contém uma diversidade de grupos raciais, entendendo a sociedade como uma população mestiça e por outro, essa variedade de grupos interessa ao mercado olhando ao Brasil como um “simulacro das populações humanas e de suas respectivas doenças” (CASTRO, 2020, p. 143).

A autora do livro se pergunta, por que as pessoas no Brasil participam dos experimentos? A pesquisa desenvolvida mostra as complexidades das relações que envolvem a experimentação farmacêutica. Os ECR acabam sendo mobilizados como tratamentos de saúde a partir do tipo de relação que os pacientes têm com o sistema de saúde. Por um lado, se reconhece a demora na atenção dos serviços de saúde pública e, por outro, pela relação médico-paciente.

Dessa maneira, Castro analisa etnograficamente o processo de absorção dos fármacos no Brasil, onde acontecem conversões em que os problemas das pessoas acabam sendo capitalizados pela indústria farmacêutica. As doenças passam a ser áreas terapêuticas de testagem de medicamentos, os sujeitos doentes passam a ser pacientes de pesquisa, a situação de precariedade do acesso a bens e serviços do sistema público de saúde é visto como uma oportunidade para que as pessoas com doenças consigam aderir à participação na pesquisa e em muitos casos é uma recomendação clínica. Isto caracteriza a população como morbiodisponível, sendo um exemplo das inversões que a autora identifica criticando essas capitalizações que, por momentos, aparentam ser positivas e favoráveis às pessoas doentes.

E por último, a terceira parte chamada Farmacodinâmica trabalha a experimentação propriamente dita em seres humanos. É uma sessão rica em anotações do diário de campo já que se trata do trabalho de campo mais intenso que a autora fez num centro de pesquisa privado no Brasil, o Cronicenter. Ali, mostra como, uma vez que a pesquisa clínica foi aprovada pelo Sistema CEP-Conep, selecionam pessoas com doenças, que na maioria das vezes nunca foram tratadas, para logo fazer a experimentação propriamente dita. Tanto o capítulo primeiro como essa terceira parte do livro, são muito pedagógicos em relação ao processo feito pela pesquisadora para construir o objeto e ingressar em campo. Em primeira instância, tentou ingressar em dois hospitais públicos para fazer pesquisa de campo sem êxito já que, entre outras coisas, o projeto não foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do hospital. Mas, esse caminho a fez chegar ao Cronicenter, indicação feita pelos próprios médicos ao reconhecer o lugar como um centro destacado nesse tipo de pesquisa.

Uma vez que o projeto foi aprovado pelo comitê de ética e aceito nesse centro de pesquisa privado, Rosana Castro descreve as primeiras impressões ao entrar no Cronicenter e as estratégias elaboradas por ela para conseguir ir adentrando cada vez mais na experimentação farmacêutica. É de se destacar a estratégia da escrita para não revelar a localização do centro, nem os nomes dos pesquisadores, das pessoas que participaram da experimentação e as doenças que faziam com que eles comparecessem a esse lugar. Isso mostra como há dados que são delicados em termos éticos, mas cujo ocultamento não prejudica a etnografia. Através do uso de caixas pretas para não mostrar as doenças, nomes artificiais e descrições alteradas do espaço físico, Castro cria imagens pelas quais o/a leitor/a imagina os espaços, as cenas, os ritmos e as pessoas. Por exemplo, em algumas observações de consultas com médicos-pesquisadores e pacientes, o fato de registrar só o barulho da caneta ou das folhas5, o leitor pode imaginar a relação entre o médico-pesquisador e o paciente no centro de pesquisa. Assim, fica mais explícita a complexidade das relações que compõem a experimentação e o lugar de produção que pode caber a cada ator envolvido.

O objetivo da autora com essa etnografia é instigar e inspirar a pesquisar a biomedicina e produz esse “efeito”, sobretudo para os leitores familiarizados com o campo da saúde ou da ciência. O livro está estruturado e escrito de tal forma que o leitor fica capturado pelas descrições e insights que a autora vai trabalhando, assim como também a análise detalhada da produção farmacêutica contemporânea através de uma crítica política refinada que evidencia dispositivos coloniais e racistas no processo analisado.

Para concluir, é pertinente ressaltar que o livro é uma etnografia que demonstra a vida como um objeto de mercadoria nas economias políticas atuais. A partir do diálogo com obras de Michel Foucault, Microfísica do poder e Em defesa da Sociedade; e Nikolas Rose A política da própria vida, Rosana Castro conclui que os modos de capitalização de doença de algumas pessoas, na sua grande maioria negras e sem acesso a bens e serviços de saúde, permite a produção de tecnologias de melhoramento das condições de vida de outras. Ambas as lógicas apontam para uma interdependência entre biopolíticas e necropolíticas contemporâneas, que dizem muito a respeito da dinâmica internacional da indústria farmacêutica.

Referências:
CASTRO, Rosana. Precariedades oportunas, terapias insulares. Economias políticas da doença e da saúde na experimentação farmacêutica. Tese de doutorado em Antropologia Social. Universidade de Brasília, Brasília. 2018. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/34204?locale=fr. Acesso em: 15 de janeiro de 2021.

CASTRO, Rosana. Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica. 1 Ed.. –São Paulo: Hucitec, 2020.

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