Na capital de um país da América Latina e do Caribe, em uma instituição de saúde de alto prestígio, com pesquisas credenciadas, com um comitê de ética que revisa e aprova ou rejeita protocolos, com inúmeros documentos nacionais e internacionais, com a presença de uma autoridade reguladora de pesquisa; algo aconteceu sem que ninguém percebesse… até que uma pessoa foi recrutada de forma desonesta e sentiu que não queria ser “um número mais algo”.
[Esse artigo é de livre acesso e vale a pena ser lido; abaixo está parte de uma das seções].
Em defesa própria e alheia
Após uma leitura detalhada do documento do
TCLE, “o paciente” listou várias questões que geraram sentimentos em relação ao “protocolo”, às ações do “médico/pesquisador” e à responsabilidade do centro de atendimento. Tudo o que foi surgindo (ideias, propostas, sugestões, críticas, questionamentos, reclamações) foi anotado em um brainstorming, sem ordem lógica ou cronológica, para que nenhum detalhe escapasse:
- NUNCA recebeu um “convite para participar”.
- NINGUÉM o informou que sua consulta por causa de uma dor inespecífica levaria ao tema de pesquisas sobre uma patologia associada a fatores que os médicos-pesquisadores estavam interessados em conhecer, mas que não tinham nada relacionado com sua consulta.
- A menção no pseudo-TCLE do número de participantes foi pouco clara e foi imprecisa.
- NÃO foram detalhados os critérios de inclusão nem de exclusão. A realização dessa “bateria de exames” foi EXTEMPORÂNEA, pois o prazo estipulado no protocolo para recrutamento, como se lê no CI, estava vencido.
- Quanto aos riscos das pesquisas, NADA foi mencionado quanto ao possível vazamento de dados, nem tampouco quanto à perda de confiança no “médico/pesquisador”, nos restos dos médicos e técnicos e na instituição como um todo, como consequência de falhas éticas, comunicacionais, metodológicas e processuais, entre outras, que justificariam a denúncia ao Presidente do Comitê de Ética e, eventualmente, à autoridade sanitária. No caso dela, em particular, o principal “risco” não está na picada da agulha (que a deixou com hematomas por toda a área durante uma semana), mas no impacto que poderia ser causado pelo fato de as pessoas que trabalham lá terem acesso às suas informações, conhecerem seus dados confidenciais e invadirem sua privacidade. Mesmo que não se trate de uma “doença constrangedora” ou “incapacitante”, como de fato NÃO é, o “paciente” acha constrangedor que as pessoas com quem ele interage há anos em vários eventos relacionados à saúde tomem conhecimento de sua condição (portador de uma suposta doença que está sendo imposta a ele para poder investigar ele).
Ele está angustiado com o alcance que essas informações poderiam ter sobre ele mesmo e sobre terceiros, pois se ele viesse a relatar o que aconteceu, seus dados confidenciais seriam expostos e ele não está disposto a que isso se torne público ou que se torne um tema de conversa entre colegas, já que se trata de um ambiente pequeno e altamente competitivo. Como se não bastasse, se ele tomasse uma atitude em relação ao dano causado, poderia ser rotulado como “conflituoso”, quando, na verdade, foi uma vítima que seria revitimizada por essa situação, pois não apenas sua esfera pessoal, privada e íntima foi invadida: se ele quisesse reclamar, perderia o anonimato, o que nunca deveria ter acontecido com ele ou com nenhum outro “paciente”.
- A falta de transparência e a linguagem equivocada podem ser observadas na descrição do que está implicam as manobras a serem realizadas no estudo, onde é mencionado que elas são rotineiras em estudos de prevenção e que os médicos decidirão sobre o tratamento convencional de acordo com a patologia do participante. Observe que esse “estudo” NÃO está relacionado ao motivo alegado para o direcionamento ao centro. Nesse sentido, a “equipe médica” priorizou a pesquisa em detrimento do atendimento médico, considerando erroneamente que é mais importante para sua carreira profissional, de modo que, a rigor, a assistência necessária não foi prestada, o que pode ser interpretado como negligência por omissão e uma violação dos direitos humanos do “paciente” e até mesmo um conflito de interesse que fere gravemente o princípio da beneficência inerente à formação médica.
- Quanto aos benefícios, o CI argumenta que não haverá benefícios diretos para o participante, pois “apenas” serão obtidos dados médicos. A respeito disso, o Artigo 15 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos refere-se explicitamente ao compartilhamento de benefícios, também traduzido como benefício compartilhado dos resultados. Uma interpretação ampla desse artigo sugeriria que aqueles que tiveram de “colocar o corpo” (Bergel, 2007), não por altruísmo, mas por falta de informações oportunas e transparentes (Osuna Carrillo, 2000), deveriam ter acesso aos resultados obtidos, se estes pudessem ser benéficos para tratar ou reverter sua condição clínica, caso contrário, o propósito seria diluído ou se transformaria em um mero uso circunstancial dos “objetos de estudo” ou “sujeitos” (Cecchetto, 2009).
- Mais preocupante para o “paciente” é a falsidade com que o TCLE menciona que a participação no estudo não tem custo. Ele omite, ilude e evita reconhecer que a plano de saúde, a pré-pago ou outro será quem deve custear a “bateria de testes” que conforma “o circuito”. Essa e outras práticas duplicadas ou desnecessárias podem funcionar como um sinal de alerta para um auditor que considere que, para aquele “paciente”, significa um custo excessivo para o provedor, e essa opinião pode influenciar negativamente a futuras coberturas.
- No TCLE é exposto que não há remuneração financeira para o estudo, nem para os participantes nem para as pesquisas. Da mesma forma, afirma-se que a participação na pesquisa é completamente livre e voluntária, portanto, o participante pode se retirar a qualquer momento, assim que decidir. A afirmação é totalmente FALSA, pois a adesão ao protocolo NÃO FOI VOLUNTÁRIA, logo, houve coerção. Também fica explícito que o CEP, a autoridade regulatória ou o patrocinador, cujo nome NÃO está registrado, poderia encerrar o estudo, deixando assim de declarar quaisquer possíveis conflitos de interesse.
- A intenção de se passar por rigoroso, quando há descumprimento dos regulamentos, fica evidente quando são indicados os dados de contato do pesquisador, que se compromete com que “o médico responsável pelo estudo responderá a quaisquer dúvidas que possam surgir sobre a participação”. Embora o TCLE contenha um número de telefone de contato, para ter acesso a uma nova consulta com “o médico” que também é “o pesquisador principal”, é necessário solicitar um agendamento e pagar pela consulta, já que “esse profissional só atende de forma privada” no mesmo centro. Além disso, “as tem que ser marcadas com três meses de antecedência”.
- A seção sobre “confidencialidade” é um compêndio de frases feitas sem a menor consistência. Quando “o paciente” perguntou sobre isso, foi dito a ele que eles só seriam vistos pela equipe de pesquisa, “sem violar a confidencialidade de acordo com as leis e regulamentações aplicáveis”. O consentimento afirma que essa autorização ou permissão para compartilhar as informações pessoais de saúde do paciente será pelo tempo que for necessário. Ele adverte que essa autorização pode ser revogada a qualquer momento com aviso prévio por escrito ao pesquisador ou à equipe responsável. O cancelamento após o início da participação significa não continuar no estudo e não realizar mais nenhum procedimento, mas as informações pessoais de saúde coletadas até aquele momento serão usadas para os resultados do estudo.
A cláusula de confidencialidade NÃO especifica como, por quanto tempo ou onde as informações serão armazenadas. Por si só, a maneira pela qual a confidencialidade das informações é protegida é INACEITÁVEL. As informações foram obtidas de modo ilegítimo, pois não tinham a PERMISSÃO mencionada acima. Além disso, com uma revogação, as informações coletadas permanecerão em posse do “pesquisador”, da “equipe”, da instituição e de um patrocinador não identificado.
A autorização do “paciente” nunca foi solicitada e, logo, não foi concedida em tempo adequado, uma frase clichê que aparece no consentimento. Isso mostra a profunda ignorância ou o completo descaso por parte do pesquisador, da equipe e do comitê de ética da instituição em relação aos regulamentos em vigor em nível local, nacional e internacional e de boas práticas clínicas.
O “paciente” se pergunta qual deve ter sido o julgamento do comitê que aprovou a realização do estudo. Sendo uma instituição tão renomada tecnicamente, certamente terá recomendado ao “pesquisador” e à sua “equipe” que reformulassem os aspectos; não obstante, nem o TCLE nem os procedimentos referidos mostram o cumprimento de tais exigências, e seria impensável não terem existido.